Humberto Ávila, autoritarismo hermenêutico e o TSE

Um dos grandes problemas da vivência do Direito Eleitoral é a insegurança na aplicação das normas jurídicas, sobretudo decorrente da falta de contornos precisos dos seus institutos. Conceitos como elegibilidade, inelegibilidade, incompatibilidade, cassação de registro e quejandos são utilizados sem uma teoria conseqüente da inelegibilidade. Somando-se a isso o relativismo hermenêutico que grassa em nossas universidades e contaminou a nossa jurisprduência, temos um coquetel devastador para os aplicadores do direito.

Venho, vez por outra, fazendo menção aos equívocos da corrente analítica do direito, do construtivismo jurídico e de outras formas de niilismo jurídico. Como exemplo dos compromissos teóricos dessa forma de pensar e vivenciar o direito eleitoral e o direito como um todo, tout court, cito mais uma vez a excelente obra Teoria dos princípios de Humberto Ávila. Esse livro vem sendo objeto das minhas meditações desde o seu lançamento em 2003, estando já na 8ª edição em pouquíssimo tempo, com traduções sérias para o alemão e inglês, endossado por estudiosos de escol como Frederick Schauer e Claus-Wilhelm Canaris. Por tudo isso, além da sua pronta adoção pela academia brasileira, já seria motivo para a sua leitura atenta. Escreverei sobre ele um artigo doutrinário, fazendo algumas ponderações, algumas das quais bosquejo rapidamente aqui.

A obra parte da hoje conhecida distinção entre texto e norma. A norma seria a significação reconstruída pelo intérprete no ato de aplicação. Como significado, a norma não estaria incorporada ao conteúdo das palavras e orações, razão pela qual a interpretação não seria um ato de descrição de algo previamente dado, mas um ato de decisão, que constitui a significação e os sentidos de um texto (p.31-32 da 5ª edição, que passo a citar). Segundo Ávila, a interpretação apenas constrói exemplos de uso da linguagem ou versões de significados. Razão pela qual, ela apenas se concretiza no uso (p.32). Porém, se é certo, segundo Ávila, que a norma não se contém no texto, é dizer, a significação não faria morada no seu suporte físico, não menos certo que existiriam significados mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Numa palavra: existiriam sentidos pré-existentes ao processo particular de interpretação (p.32).

Ora, se Ávila afirma que o sentido não se contém no texto, onde estariam presentes esses significados mínimos e pré-existentes? Tais sentidos são por ele denominados de núcleos de sentidos, que seriam constuuídos pelo uso e antecederiam o processo interpretativo individual (p.33). Não estando no texto, possivelmente estariam em uma realidade intersubjetiva, que seria "estruturas de compreensão existentes de antemão ou a priori (o "enquanto" hermenêutico de Heidegger) - p.32. Esse ponto é relevante e mereceria uma análise mais detida aqui, que ficarei devendo.Todavia, sublinho que essas afirmações não são fielmente observadas por Ávila, cujo compromisso com a corrente analítica e com a visão monológica da teoria do conhecimento o faz abdicar de qualquer visão dialógica ou pragmática da interpretação. É o eu-totalitário quem atribui sentido ao texto, a partir das suas conexões axiológicas.

O que são as conexões axiológicas? De antemão, avisa Ávila que elas não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete (p.34). A partir de que marcos? Segundo ele, existiriam ao menos dois limites para a interpretação: (i) o texto, que impõe limites à construção de sentidos; e (ii) os núcleos de sentidos, decorrentes do uso feito pela comunidade das palavras que estão incorporadas ao texto (p.34). Ora, mas esses limites são logo adiante abandonados, quando Ávila assevera que o último passo na construção de sentido não é dado nem pelo dispositivo (texto) nem pelo significado preliminar (núcleo de sentidos), mas pela decisão interpretativa (p.41). Nem mesmo os fins almejados pelo ordenamento jurídico ou os valores por ele protegidos (cf. p.34) servem para muita coisa, porque ao fim e ao cabo "a relação entre as normas constitucionais e os fins e os valores para cuja realização elas servem de instrumento não está concluída antes da interpretação, nem incorporada ao próprio texto constitucional antes da interpretação. Essa relação deve ser, nos limites textuais e contextuais, coerentemente construídas pelo próprio intérprete" (p.41, grifei). Ou seja, tanto o texto, como os valores e fins apenas possuem conteúdo a posteriori, como produto da atuação do intérprete, que não tem, portanto, limite algum para construir o sentido que é a norma.

Pior: tal o poder criativo do intérprete, que até mesmo a distinção entre princípios e regras queda impossibilitada antes do pronunciamento concreto do intérprete: segundo as suas conexões axiológicas, compete ao intérprete intensificar ou deixar de intensificar os valores e os fins que ele entenda devam ser alcançados, tratando a norma como regra ou como princípio (p.42). E essas conexões axiológicas, que são feitas pelo intérprete segundo as suas características pessoais, podem inclusive alterar o possível sentido originário do texto, fazendo com que as razões justificadoras da regra sejam substituídas pelas razões superiores do próprio intérprete, assim consideradas pelo aplicador diante do caso concreto (p.50).

Como se pode ver, para Ávila não há distinção entre regras e princípios a piori: compete ao intérprete fazê-la.Tampouco há norma a priori: é o intérprete quem a cria. Mais ainda: mesmo existindo sentidos comumente aceitos, clareza em uma aplicação costumeira de um texto, pode o intéprete deixar de aplicá-la ou mesmo infringi-la, mediante uma nova interpretação, em que as suas razões superiores se sobrepõem às razões justificadoras do legislador ao editar a norma.

Com isso, resta claro o relativismo absoluto dessa construção teórica, que infirma qualquer segurança mínima presente no ordenamento jurídico. Ela autoriza, na verdade, toda e qualquer interpretação, de modo que não mais existem sentidos: apenas o sem-sentido do absolutismo do intérprete. Eis uma visão autoritária e ingênua do direito, que sempre combati e combato, cujas linhas são tolamente endossadas em nossas universidades de modo acrítico e perverso.

Viva o autoritarismo hermenêutico de qualquer aplicador de normas jurídicas. Viva a liberdade completa do Tribunal Superior Eleitoral para decidir desde já legitimado por essa visão subjetivista do direito, cujas interpretações estão de antemão blindadas por qualquer crítica democrática!

Comentários

Marcela disse…
Adriano,
Desde que li seus artigos criticando o construcionismo de Paulo de Barros Carvalho, senti um alívio por alguém, mais treinado que eu nestes assuntos, dizer tudo o que eu intuía ao ler o livro "Direito Tributário: Linguagem e Método". Percebi que algo grave estava acontecendo, mas a situação é pior do que eu suspeitava. O número de afirmações absurdas dos adeptos de PBC e, pior, a forma absurda de pensar o Direito, me levam a concluir que o construcionismo (na prática, um desconstrucionismo) é uma forma muito elegante de burrice.
Você tem feito um trabalho importante na contra-corrente desse fenômeno que vem se afirmando sem encontrar resistência quantitativamente à altura.
Um abraço,
Marcela Cristhina Andrade Gomes.
Goiânia-GO
Vinicius disse…
Boa tarde professor, não concordo com o Senhor (pelomenos em parte)

Também me assusta o autoritarismo hermeneutico. Mas me assusta mais aida o autoritarismo do positivista inconsequente, o autoritarismo do casuísmo jurídico e o autoritarismo decisionista.

Penso que a teoria que o Sr. chama de niilista tem uma pretensão muito maior, do que simplesmente abolir qualquer normatividade a priori ou reduzir tudo à situação dialógica do caso concreto.

Trata-se na verdade de um discurso CONTRAFÁTICO. Uma pretensão de justificar RACIONALMENTE normas de conduta, libertando da redução positivista.

O dogma da segurança jurídica não pode mais justificar as atrocidades da ausência de racionalidade sobre normas.

Digo racionalidade do ponto de vista kantiano, do universalismo de ApeL, de se discutir por meio de argumentos, livres, a obrigatoriedade de normas de contuda.

Mas em um ponto nos concordamos, refiro-me à existência de normas a priori de agir. E INDICO A LEITURA DE KARL-OTTO APEL.

Essas normas de agir, a priori, para exisitrem tanbém devem sem racionalmente justificáveis.

Não faça apenas um meta discurso, submeta a norma do TSE ao debate argumentativo, supere-a e submeta novamente a crítica ao discurso.

Veremos se podemos universalizar.

Parabéns pelo tópico. Excelente.

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