Novilíngua eleitoral: tá tudo dominado pelo irracionalismo!

Quanto mais eu leio os fundamentos dos votos que sustentam não ser a inelegibilidade uma sanção, mais me pergunto se perdi a racionalidade. Porque simplesmente não consigo compreender essa nova realidade owerlliana construída por uma espécie de novilíngua, que desconstrói o conceito de inelegibilidade, fazendo com que ela simplesmente deixe de existir. Sim, na obra de George Orwell, 1984, era fundamental controlar os indivíduos através do controle da linguagem, de modo que a dessignificação ou a ressignificação das palavras nada mais seria do que um meio de controle das ideias, restringindo assim as possibilidades do pensamento. Pensar com limitações de palavras para significar, ou mesmo com limitações de significados dessas mesmas expressões, era já uma forma de emascular o espírito humano.

Confesso publicamente a minha angústia intelectual. Sinto-me como o personagem do profético Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, e brado com ele: "Estou cego!". É uma cegueira também leitosa, em que tudo é branco, sem forma, para além de qualquer compreensão.

A minha salvação, começo a imaginar melancolicamente, é desenvolver um certo cinismo. Talvez conserve um pouco de sanidade, ou quem sabe possa intelectualmente criar uma espécie de mundo de Bob, como no desenho infantil em que o menino criava as suas próprias realidades.

Lembro-me da ADI 3592/DF, em que o STF declarou constitucional o art.41-A da Lei nº 9.504/97, afirmando lhanamente que a cassação de registro ou do diploma eram sanções diferentes da inelegibilidade, que seria mais severa. Aliás, a ementa do julgado chega a dizer que a compra de votos "não implica a declaração de inelegibilidade, mas apenas a cassação do registro ou do diploma". É dizer, seria a inelegibilidade mais grave, uma sanção tremenda a tornar a perda do mandato uma coisica de nada. Ei-la:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 41-A da Lei n° 9.504/97. Captação de sufrágio. 2. As sanções de cassação do registro ou do diploma previstas pelo art. 41-A da Lei n° 9.504/97 não constituem novas hipóteses de inelegibilidade. 3. A captação ilícita de sufrágio é apurada por meio de representação processada de acordo com o art. 22, incisos I a XIII, da Lei Complementar n° 64/90, que não se confunde com a ação de investigação judicial eleitoral, nem com a ação de impugnação de mandato eletivo, pois não implica a declaração de inelegibilidade, mas apenas a cassação do registro ou do diploma. 4. A representação para apurar a conduta prevista no art. 41-A da Lei n° 9.504/97 tem o objetivo de resguardar um bem jurídico específico: a vontade do eleitor. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

Nem me animo aqui a mais uma vez demonstrar a cinca dessa separação, que começou a esvaziar o conceito de inelegibilidade, tornando essa signo sem significação. Mas esse descompromisso chocante com os conceitos jurídicos termina sendo também com a própria jurisprudência e com a tradição jurídica. A inelegibilidade é sanção; a privação dos direitos políticos, também, quando ambas são efeitos de fatos jurídicos ilícitos. Essa era a posição do STF. Será que deixou de ser?


E M E N T A: ELEITORAL - MANDADO DE SEGURANÇA - DECISÃO DENEGATÓRIA - SIGNIFICADO DESSA EXPRESSÃO - RECURSO ORDINÁRIO - MATÉRIA ELEITORAL - PRAZO DE INTERPOSIÇÃO - UTILIZAÇÃO DE FAX - RATIFICAÇÃO EXTEMPORÂNEA DA PETIÇÃO RECURSAL - INTEMPESTIVIDADE - CONDENAÇÃO PENAL TRANSITADA EM JULGADO - CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL - PRIVAÇÃO DA CIDADANIA (CF, ART. 15, III) - AUDIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO - AGRAVO IMPROVIDO. RECURSO ORDINÁRIO EM MATÉRIA ELEITORAL - PRAZO DE INTERPOSIÇÃO - CÓDIGO ELEITORAL (ART. 281) - LEX SPECIALIS. - É de apenas três (3) dias o prazo de interposição, para o Supremo Tribunal Federal, do recurso ordinário contra decisão denegatória de mandado de segurança proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral em sede originária (Código Eleitoral, art. 281). (...) SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS - CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL - SUBSISTÊNCIA DE SEUS EFEITOS - AUTO-APLICABILIDADE DO ART. 15, III, DA CONSTITUIÇÃO. - A norma inscrita no art. 15, III, da Constituição reveste-se de auto-aplicabilidade, independendo, para efeito de sua imediata incidência, de qualquer ato de intermediação legislativa. Essa circunstância legitima as decisões da Justiça Eleitoral que declaram aplicável, nos casos de condenação penal irrecorrível - e enquanto durarem os seus efeitos, como ocorre na vigência do período de prova do sursis -, constitucional concernente à privação de direitos políticos do sentenciado. Precedente: RE nº 179.502-SP (Pleno), Rel. Min. MOREIRA ALVES. Doutrina. (grifamos).

Continuarei lutando contra os moinhos de vento. Sim, é uma atitude quixotesca, mas resta-me apenas isso intelectualmente, porque ainda não sei bem de que lado está a cegueira. Continuarei pensando o Direito Eleitoral como ciência; continuarei pensando o ordenamento jurídico a partir de institutos fundamentais da teoria geral do Direito; continuarei defendendo a cidadela do Direito Eleitoral dos seus salteadores de momento, que agridem os seus institutos para nada deixar no lugar.

Os que perderem tempo lendo o que escrevo, continuarão muito bem vindos. Mas ao menos não serão enganados, tampouco induzidos a erro. Aqui é local afeto aos cegos, que não conseguem enxergar essa realidade criada pela
novilíngua eleitoral. Sintam-se à vontade para pensar e sair do senso comum estúpido, do discurso fácil midiático, do desapego às garantias individuais.

Comentários

Yuri disse…
SOARES:

Hoje, no Roda Viva, falou o juiz federal Fausto De Sanctis. Em geral, gostei da entrevista.

Ao ser indagado sobre a lei 135/2010, a "Ficha Limpa", ele afirmou concordar com ela, pois fixaria critérios etc. Já conhecemos esse lado da argumentação.

Mas uma coisa me despertou curiosidade e está me levando à pesquisa: ele ponderou que o princípio da não culpabilidade, se remetido à origem, na França, salvo engano em 1670, não era um óbice, por exemplo, a muitos atos que hoje as pessoas julgam impróprios porque antecipariam indevidamente uma culpa.

Ou seja: a não culpabilidade era relativa e sua aplicação se dava ENQUANTO O RÉU FOSSE, PRESUMIDAMENTE, INOCENTE. De Sanctis frisou o "presumidamente" e suscitou que, na dúvida, em especial nesse caso da "Ficha Limpa", o favorecimento é para a sociedade ("in dubio pro societate").

Mantenho-me firme em meu posicionamento — contra essa lei —, mas compartilho com o amigo e com os leitores deste sítio as palavras do magistrado, bem como o "provoco", Soares, a refletir sobre a evolução histórica do princípio da presunção de inocência — não para ceder espaço à culpabilidade, senão para analisar como ele era interpretado/aplicado antes e como se deu sua história até os dias atuais.

Por ora é isso. Abraço do Yuri Brandão
Unknown disse…
Caro Prof. Adriano, eu me sinto assim já faz muito tempo, militando na área do Direito criminal em nosso Estado. As vezes dá vontade de jogar tudo para o alto e ficar em casa, mas é preciso ganhar a vida.

Eu pessoalmente acho que a inelegibilidade é sim uma sançāo, os fatores que levam a ela é que são condições.

Ter "ficha suja", nos moldes da nova Lei, é uma "condição" que torna o cidadão inelegível, sendo o resultado (sanção) a própris inelegibilidade.
Anônimo disse…
Professor Adriano e Caro Yuri.
Se a ideia do juiz De Sanctis é que no caso da Ficha Limpa a dúvida se resolve a favor da sociedade, quem deveria então dirimir esta dúvida seria a sociedade, que então decidirá através do voto.

Um abraço,

Alexandre Francisco Cavallazzi Mendonça
Concordo com o Dr. Alexandre, ilusre Advogado d Florianópolis/SC.

E concordo, mais uma vez, com cada palavra do Mestre Adriano.

A razão, a luz da ciência e da reflexão não sucumbirã a esse mar de irrazão e incultura!

Lutemos!

Ruy Espíndola

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