Interpretação e norma jurídica
Como um aperitivo, parte inicial do capítulo introdutório do volume II das Instituições de Direito Eleitoral, que sairá em janeiro de 2013 pelo selo da Editora Fórum.
1.
Interpretação e norma jurídica.
A
norma jurídica é a significação de um texto positivo. O texto
legislado está ali para o intérprete como algo, como um objeto que
se põe para ser compreendido. O ato que põe o texto positivo é
fonte do direito, sendo produto de processo regulado por outras
normas jurídicas, que dispõem sobre competência e procedimento de
ponência de normas. Todo diploma legal é produto de um ato de
vontade, individual ou coletivo. Ato normado emanado de autoridade
competente, que veicula um sentido para ser compreendido como função
prescritiva de condutas humanas ou distributivas de competências.
O
sentido que é a norma jurídica está no texto positivado. Quem
expediu diploma legal veiculou um texto impregnado de significação
com a finalidade de regrar a zona material da conduta humana. O
diploma jurídico é a fonte do direito; seu conteúdo, a norma
jurídica. O sentido deôntico completo do conjunto de textos
positivados, regrando determinada matéria, é o modelo jurídico.
As
normas jurídicas não são criações do intérprete. São conteúdo
dos textos positivados. O intérprete busca conhecer, em atitude
intelectiva, o sentido expresso pelo suporte físico de significados
deônticos que é o texto de direito positivo. A atitude intelectiva
do intérprete, porém, não é passiva. Constituição, leis,
decretos, portarias, etc., são diplomas positivos, fontes de
direito, que são produzidos para que as normas que eles veiculam
incidam e sejam vividas em um contexto cultural e social. O
intérprete e o texto estão inseridos em uma tradição que lhes
antecede e que formam o contexto em que a interpretação se dá, no
seio de um diálogo ininterrupto e contínuo com a comunidade do
discurso. Toda interpretação é sempre comunitária, dentro de uma
mesma realidade simbólica e de uma fusão de horizontes, onde
passado, presente e futuro se encontram.
Dissemos
não ser passiva a interpretação. O sujeito põe-se diante do
texto, porém nunca se encontra só. De um lado, procura compreender
isto aí que se põe para ser
interpretado, como algo que lhe é exterior, é dizer, como algo
posto por alguém para ser compreendido pela comunidade do discurso e
em conformidade com a gramática que regra a linguagem utilizada; de
outra banda, busca entender os sentidos em consonância com o ontem
do texto e hoje do
contexto social, histórico e cultural em que está inserido. É
dizer, o sentido do texto positivo, que é a norma jurídica, pode
ter, e é comum que tenha, uma evolução de compreensão e vivência
pelo ato recognitivo a partir de mudanças no seu contexto. É dizer,
a norma jurídica, como significação, pode sofrer modificações em
razão do tempo e de mudanças no contexto social, não sendo ela, a
norma, produto de um único sujeito que atribui ao texto o sentido
que queira ou como queira1.
É erro corrente,
hoje, o dizer-se que o intérprete atribui sentido ao texto
positivado, criando a norma jurídica. Primeiro, porque uma
característica do signo é ser produto da convenção humana, não
estando nas mãos de um indivíduo a capacidade de mudar o sentido de
um signo linguístico, salvo se aquele novo sentido for estipulado
por ele e ingressar, pela convenção, na vivência social. Desde
Saussure sabe-se que a arbitrariedade da relação significante e
significado repousa numa espécie de acordo coletivo entre os
falantes, ou seja, na natureza de objeto cultural que possui a
linguagem2.
Segundo, porque a norma jurídica tem uma função conativa ou
prescritiva, é dizer, visa o efeito ilocucionário de modificar a
conduta humana, conformando-a. Ora, como poderia ser a norma a
criação de um único intérprete, se justamente a sua função é
atuar no simbolismo social, induzindo a que as pessoas ajam de um
jeito ou de outro, se insiram em um plexo de competências, etc.?
Ademais,
é preciso ressaltar que um texto, para que tenha sentido em uma
determinada língua, seja escrito observando um código comum entre o
emissor e o destinatário. Há de haver uma gramática para atribuir
uma significação a um signo3;
os falantes buscam se entender mediados por uma linguagem que
preexiste a eles e na qual estão inseridos, não dispondo dela como
queiram. A comunicação se dá em uma linguagem regrada e
compartilhada, em que o outro se põe sempre presente na sua dimensão
pragmática.
É
certo que não poucos sustentam uma visão relativista e cética
sobre o produto da atividade interpretativa. Animados nem sempre pelo
mesmo fundo teórico, sustentam ser a significação atribuída ao
texto pelo intérprete; é dizer, a natureza da interpretação seria
constitutiva do sentido do texto, sendo ele, o texto, nada mais do
que marcas gráficas ou suportes físicos predispostas pela
autoridade competente, no caso do direito positivo. Sem esconder o
psicologismo que forra o seu pensamento, Giovanni Tarello fez a
diferença entre interpretação-atividade e interpretação-produto,
sendo aquela “un
fenomeno mentale, come l'attribuire un significato a un documento”4.
Para Tarello, desse modo, a interpretação seria uma atividade de
atribuir um significado a um documento, que pode consistir tanto em
um ato de vontade (uma volição) como ato de conhecimento (uma
intelecção). Competiria ao intérprete, então, decidir a atribuir
ou propor ao documento um particular significado5,
é dizer, “o
significato non è affatto precostituito all'attività
dell'interprete, ma ne è anzi il risultato”6.
Sendo a norma jurídica a significação de um documento positivo,
conclui Tarello que “'norma'
significa semplicemente il significato che è stato dato, o viene
deciso di dare, o viene proposto che si dia, a un documento che si
ritiene sulla base di indizi formali esprima una qualche direttiva
d'azione”7.
Ora, resta claro que a corrente analítica defendida por Tarello
pretende assentar a premissa de que o intérprete é livre na
atividade de atribuir sentido a um texto legal, cuja significação,
que é a norma jurídica, seria sempre um posterius,
um resultado da sua atividade mental criativa, dos seus sentimentos
pessoais, da sua vontade, enfim.
Há
dois aspectos que devem ser respondidos por Tarello. Se a
interpretação é um ato de vontade do intérprete e a norma nada
mais seria que o produto de uma vontade subjetiva sua, como ela
poderia ter uma função prescritiva (nêustico) de conformar a
conduta humana, é dizer, de ser uma “direttiva
d'azione”?
Sendo o sentido atribuído livremente pelo intérprete, como a norma
jurídica teria o condão de vincular um universo de pessoas à
prática comum, por exemplo, de observar o sinal vermelho ou os
sinais de trânsito nas vias públicas? Essa questão da (improvável)
vinculação das pessoas a uma significação atribuída livremente
por um intérprete abre uma segunda questão relevante: como
controlar a validade da norma jurídica diante de um caso concreto?
Ora, como a significação seria sempre produto dos sentimentos ou da
vontade de quem interpreta, como saber a diferença entre uma
interpretação séria e uma interpretação não-séria?
Tarello
resolve a questão com sinceridade em face das premissas que abraçou:
não haveria meios. Para o jurista peninsular, o controle social não
se faria sobre os procedimentos intelectuais do intérprete, havendo,
quando muito, um controle formal por meio dos órgãos que disponham
dessa competência8.
Mas aí, penso eu, teríamos um novo problema, assim ao infinito:
qual seria o órgão competente para interpretar autoritativamente e
por que meios a atividade interpretativa seria validamente exercida?
A resposta demandaria que se fizesse uma interpretação de uma norma
de competência. E quem teria competência para fazê-la, de modo que
aquela interpretação fosse vinculativa para os demais? Note-se,
assim, como a visão cética, levada as últimas consequências,
esvazia a própria função do direito como processo de adaptação
social ou ordenador da sociedade humana.
__________
1
BETTI, Emilio. “Interpretazione della legge e sua efficienza
evolutiva”, in: Diritto,
metodo, ermeneutica,
Milão: Giuffrè, 1991, p.526, deixou assentado: “Invero
l'ordine giuridico è un organismo in perenne movimento, in continua
trasformazione , che segue e rispecchia da vicino il movimento delle
trasformazioni della vita sociale. Onde solo una ricognizione
storica permette di valutare la trasformazione che un istituti ha
subito e, insieme, di riconoscere la reale portata dei nuovi
istituti e la ripercussione che esse possono avere spiegata su altre
parti dell'ordinamento rimaste formalmente (ma solo in apparenza)
immutate, quanto alla lettera.”
Pode o texto restar em aparência imutável, “ma
si integra e si riempie di uno spirito diverso conforme allo spirito
del tempo e della società per cui la norma è destinata a valere:
non già, si intende, secondo il talento soggettivo
dell'interprete”.
Emilio Betti chama a atenção para a importância de buscar
recolher o pensamento original do autor do texto, fazendo o iter
genético do iter hermenêutico. Sobre o caráter evolutivo da
interpretação, BETTI, Emilio. Interpretazione
della legge e degli atti giurici:
teoria generale e dogmatica. 2ª ed., Milão: Giuffrè, 1971, p.123
et seq.
2
Nesse sentido, FIORIN, José
Luiz. “Teoria dos signos”, in: Introdução
à linguística,
vol. I, 6ª ed., São Paulo: Contexto, 2011, p.61.
3
ECO, Umberto. O
signo.
5ª ed., Lisboa: Presença, 1997, p.22, passim.
4
TARELLO, Giovanni.
L'interpretazione
della legge,
vol. I, t.2, Milão: Giuffrè, 1980, p.39.
5
TARELLO, Giovanni.
L'interpretazione
della legge,
cit., pp.61-62.
6
TARELLO, Giovanni.
L'interpretazione
della legge,
cit., p.63. No mesmo sentido, GUASTINI, Nuovi
studi sull'interpretazione.
Roma: Aracne, 2008, p.170.
7
TARELLO, Giovanni. L'interpretazione della legge,
cit., p.64.
8
TARELLO, Giovanni.
L'interpretazione
della legge,
cit., p.67. Ao fim e ao cabo, Tarello põe o controle social da
interpretação apenas no campo da argumentação jurídica, no
dever de fundamentar (pp.71-72). Mas não sem desqualificar o papel
da lógica jurídica, especialmente da lógica deôntica (pp.75-85),
e da nova retórica de Parelman (pp.85-99).
Comentários
Há previsão de quando deve sair a nova edição das Instituições? Estou acompanhando seu blog e o site da editora o mês inteiro, e ainda sem notícias.
Um forte abraço!