Captação ilícita de sufrágio e aplicação apenas de multa: por uma nova interpretação do art.41-A em face da LC 135/2010


Abaixo publico, como degustação, uma passagem da nova edição das INSTITUIÇÕES DE DIREITO ELEITORAL, que sairá pela Editora Fórum até o final de agosto.


A Lei Complementar 135 mudou o ordenamento jurídico eleitoral, desafiando uma interpretação dos diplomas eleitorais que se amoldem à nova ordem estabelecida, em que as inelegibilidade passaram a ter uma dimensão bem mais ampla e mais grave.

Quando o Tribunal Superior Eleitoral começou a construir a jurisprudência sobre o art.41-A, a sanção de inelegibilidade raramente gerava resultados práticos na esfera jurídica do candidato infrator, que normalmente terminava se beneficiando da infração cometida. Ademais, o prazo de três anos era, de fato, insuficiente para inibir aventuras e estripulias praticadas por candidatos no afã de obterem o mandato eletivo almejado. Assim, a interpretação outorgada àquele dispositivo passou a ser construída de modo a atender os reclamos da comunidade jurídica, desejosa de maior efetividade das sanções eleitorais.

Foi com essa diretriz que o TSE passou a interpretar que a cassação de registro de candidatura não se confundia com a inelegibilidade, afastando a necessidade de trânsito em julgado da decisão para gerar efeitos práticos, consoante determinava a revogada redação do art.15 da LC 64/90. Nada obstante, com a entrada em vigor da LC 135, as inelegibilidades passaram todas a ter o prazo mínimo de oito anos, exacerbando-se sobremaneira a amplitude da sanção e contagiando diversas hipóteses de ilícitos eleitorais, inclusive a captação de sufrágio.

Essa mudança significativa no tratamento das inelegibilidades não ficou adstrita às disposições da Lei Complementar nº 64/90, mas se espargiu para a legislação eleitoral como um todo, sobretudo para a Lei nº 9.504/97, de vez que os ilícitos eleitorais por ela definidos passaram também a ser hipóteses de incidência da sanção de inelegibilidade. Assim, a captação de sufrágio, as condutas vedadas aos agentes públicos, a captação ilícita de recursos, os gastos indevidos de campanha foram assumidos pela LC 135, trazendo para o arco da sua incidência os tipos descritos naquela lei ordinária.

A captação ilícita de sufrágio é ato jurídico ilícito que gera inelegibilidade cominada potenciada por oito anos1. Porém, para que haja o efeito da inelegibilidade, é necessário que a “condenação” implique cassação do registro ou do diploma. E quando é que o ato ilícito gera a cassação do registro ou do diploma, tendo como consequência a inelegibilidade? Quando “a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”2 se fizer presente no caso concreto. Não estando presente a gravidade das circunstâncias, a sanção aplicável é a multa de mil a cinquenta mil UFIR. É dizer, a nova disciplina das inelegibilidades não pode ser segregada, devendo alcançar também a interpretação do art.41-A, aproximando-o da mesma lógica que preside a interpretação das condutas vedadas aos agentes públicos.

As normas jurídicas são significações extraídas das proposições prescritivas. Não são elas o sentido de um único artigo de um determinado diploma legal, mas a significação dos textos positivados e dos princípios jurídicos que embebem o sistema, de modo que um artigo há de ser lido e compreendido dentro da estrutura total do ordenamento jurídico em que ele se insere como parte. São as normas jurídicas a totalidade significativa que forma uma unidade completa de sentido deôntico3, razão pela qual podemos falar serem elas modelos jurídicos, ou seja, o conteúdo normativo posto pelas fontes do direito. E os modelos jurídicos resultam de uma “pluralidade de normas entre si articuladas compondo um todo irredutível às suas partes componentes”4. Essa a razão pela qual é já um truísmo o dizer-se que não se interpreta o direito em pedaços, como fosse um artigo de lei bastante em-si para comportar completamente um sentido normativo. A proposição veiculada por um dispositivo dialoga com outros dispositivos do mesmo diploma legal e com outros dispositivos de outros diplomas do mesmo e de outro escalão hierárquico, compondo um todo prescritivo.

Como nos adverte Reale, ao compreendermos o conteúdo da fonte do direito (leis, decretos, portarias, etc.) como modelos jurídicos, temos uma estrutura significativa prescritiva que se projeta histórica e socialmente no tempo, até enquanto a fonte estiver em vigor, se vinculando à experiência jurídica, nada obstante “obedecendo às mutações fático-valorativas que nesta operam”5. O sentido social conativo institucionalizado que é a norma jurídica é sempre in fieri, é dizer, sofre mutações em razão da dialética implicação entre fatos, valores e normas. Dirá Reale, então, que os modelos jurídicos “nunca deixam de ser momentos da experiência jurídica mesma, enquanto expressão do mundo da cultura”6.

As razões que estavam à base da interpretação dada ao art.41-A sofreram evidente mutação. O sistema jurídico eleitoral saiu da ausência de efetividade das suas normas jurídicas, que gerou a construção pretoriana da separação das consequências práticas decorrentes das inelegibilidades e da cassação do registro de candidatura, afastando assim a aplicação da antiga redação do art.15 da LC 64/90 em face da captação ilícita de sufrágio. Agora, sem embrago, as normas eleitorais não apenas possuem efetividade como têm consequências drásticas, em uma inversão de paradigma que deve ser levado em conta na interpretação das normas jurídicas. É dizer, não há como interpretar mais o art.41-A com as lentes da LC 64/90; a LC 135 impacta o sentido da norma veiculada pela legislação ordinária, inclusive porque à captação de sufrágio se atribuiu, quando cassar o registro ou o diploma, a sanção de inelegibilidade por oito anos; acaso, portanto, não seja o caso, pela “gravidade das circunstâncias”, de cassação do registro ou diploma, aplicar-se-ia apenas a multa, cuja gradação pode ir de mil a cinquenta mil UFIR. É dizer, existe para o juiz eleitoral uma margem de ponderação na aplicação das sanções do art.41-A; e assim deve ser, porque não é razoável nem proporcional que para condutas com gravidade e percussão distintas haja uma mesma sanção, sem que se faculte ao juiz, diante do contexto dos casos concretos, fazer a dosimetria da pena lato sensu.

A redação do art.41-A, inclusive, separa nitidamente as duas sanções (multa e cassação do registro ou diploma) pelo uso de uma vírgula, a mostrar que a preposição “e” ali não está como conectivo multiplicador automático (multa, e cassação do registro ou diploma), de modo que, em face da LC 135, deve-se ler “multa, e cassação do registro ou diploma em razão da gravidade das circunstâncias”. Com essa interpretação, ganha em sentido a parte final da alínea “j” do inciso I do art.1º da LC 64/90, com a redação da LC 135, que pode ser lida assim, em seu sentido deôntico completo: “são inelegíveis os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por captação de sufrágio que implique cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de oito anos a contar da eleição”.

De fato, não se pode colocar na mesma plana a promessa de vantagem pessoal feita a uma pessoa, para cooptar a sua vontade, e a doação de bens ou serviços para uma quantidade determinável de eleitores em troca de votos. A própria introdução do § 10 ao art.73 da Lei nº 9.504/97 milita em favor dessa interpretação do art.41-A, sobretudo após o advento da LC 135, porque a vantagem dada pela Administração Pública através de programas sociais não previstos em lei ou mesmo sem execução orçamentária no ano anterior poderá, dada a gravidade das circunstâncias, desafiar apenas a aplicação de multa, consoante §§ 4º e 5º do mesmo art.737.

NOTAS FINAIS:
1 Art.1º, inc.I, alínea “j” da LC 64/90, com a redação dada pela LC 135/2010.
2 Art.22, inc.XVI, in fine, da LC 64/90, analogicamente.
3 Vide o meu Teoria da incidência da norma jurídica, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p.29 et seq.
4 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p.30.
5 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito, cit., p.39.
6 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito, cit., p.49. Ao dizermos que a norma jurídica é sempre in fieri não estamos caindo no ceticismo da corrente analítica do direito, notadamente italiana, Tarello e Gusatini à frente, que reduz a fonte do direito (texto positivo, suporte físico textual) a meros signos vazios de significação, que seria construída pelo intérprete tout court. Assumo que os textos positivos possuem em si já um sentido normativo, que condiciona o intérprete e não lhe permite vagar livremente em um labirinto de significações quaisquer. Consoante adverte LUZZATI, Claudio. L'interprete e il legislatore: saggio sulla certezza del diritto. Milão: Giuffrè, 1999, p.67, a norma in fieri nos põe em um processo em ato, aberto, que no futuro poderia também gerar decisões alternativas. Nada obstante, a norma in fieriserve a definire l'orizzonte cognitivo e operativo-decisionale dei soggetti (giuridicamente informati) che partecipano alla creazione della norma e, in genere, di quanti sono chiamati a fornire argomenti pro o contro particolari interpretazioni delle leggi” (grifo original). A interpretação parte sempre, portanto, de um sentido preliminar que o texto traz consigo, não sendo o papel do intérprete criar ab ovo novos sentidos, sem lastro no horizonte textual que se lhe põe ali, diante de si, reclamando compreensão. Interpreta-se algo; esse “algo” é isto que se põe intencionalmente para mim (istidade). Razão pela qual rejeito a lição de TARELLO, Giovanni. L'interpretazione della legge. Milão: Giuffrè, 1980, pp.61-62, passim, para quem a interpretação é a atividade de atribuir um significado a um documento, inclusive podendo decidir pela atribuição de um “particolare significato”, mesmo, digo eu, que isso implicasse uma violência simbólica. Tal esvaziamento de significação do texto nos levaria ao ceticismo total, é dizer, a um verdadeiro irracionalismo. Admitir que haja uma dinâmica da significação que é a norma jurídica não é admitir que qualquer sentido possa se converter abusivamente no sentido prescrito por um texto positivo, como bem o demonstra WRÓBLEWSKI, Jerzy. Sentido e hecho en el derecho. Cidade do México: Fontamara, 2008, pp.100-104.
7 Nesse sentido: “Investigação judicial. Abuso de poder. Uso indevido dos meios de comunicação social. Condutas vedadas. [...] 3. Comprovadas as práticas de condutas vedadas no âmbito da municipalidade, é de se reconhecer o evidente benefício à campanha dos candidatos de chapa majoritária, com a imposição da reprimenda prevista no § 8º do art. 73 da Lei das Eleições. 4. Mesmo que a distribuição de bens não tenha caráter eleitoreiro, incide o § 10 do art. 73 da Lei das Eleições, visto que ficou provada a distribuição gratuita de bens sem que se pudesse enquadrar tal entrega de benesses na exceção prevista no dispositivo legal. 5. Se a Corte de origem, examinando os fatos narrados na investigação judicial, não indicou no acórdão regional circunstâncias que permitissem inferir a gravidade/potencialidade das infrações cometidas pelos investigados, não há como se impor a pena de cassação, recomendando-se, apenas, a aplicação das sanções pecuniárias cabíveis, observado o princípio da proporcionalidade. Agravos regimentais desprovidos. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 35590, Acórdão de 29/04/2010, Relator(a) Min. Arnaldo Versiani, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 24/05/2010, Página 57/58 )”. E ainda: “ELEIÇÕES 2010. CONDUTA VEDADA. USO DE BENS E SERVIÇOS. MULTA. 1. O exame das condutas vedadas previstas no art. 73 da Lei das Eleições deve ser feito em dois momentos. Primeiro, verifica-se se o fato se enquadra nas hipóteses previstas, que, por definição legal, são "tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais". Nesse momento, não cabe indagar sobre a potencialidade do fato. 2. Caracterizada a infração às hipóteses do art. 73 da Lei 9.504/97, é necessário verificar, de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, qual a sanção que deve ser aplicada. Nesse exame, cabe ao Judiciário dosar a multa prevista no § 4º do mencionado art. 73, de acordo com a capacidade econômica do infrator, a gravidade da conduta e a repercussão que o fato atingiu. Em caso extremo, a sanção pode alcançar o registro ou o diploma do candidato beneficiado, na forma do § 5º do referido artigo. 3. Representação julgada procedente. (Representação nº 295986, Acórdão de 21/10/2010, Relator(a) Min. Henrique Neves, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 220, Data 17/11/2010, Página 15)”

Comentários

Gabrielle disse…
Texto maravilho. Retrata exatamente a correta e coerente intepretação da inelegibilidade por captação ilícita de sufrágio. Com efeito, a legislação visou coibir a prática de condutas com considerável gravidade,daí a exclusão, do rol das ineligibilidades, das condenação apenas em multa. Muito obrigada pela contribuição

eleitoralemfoco.com.br
Anônimo disse…
Prezado Adriano Soares
Já faz tempo que estamos tentando, sem êxito, enviar a seguinte pergunta a você:
O limite de dez por cento do IR para doação de campanha - pessoa física - também se aplica ao próprio candidato?
Desde já agradeço.
Parabéns pela relevância e qualidade do blog.

Salvador-BA

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