Pergunta e resposta: ciência do Direito

Perguntou-me André Morgan: Parabéns pelo seu pensamento científico exposto já nas primeiras linhas. Sua defesa ao pensamento potesiano é realmente fiel. Fico alegre quando vejo um jurista revelar o direito de forma correta, desfazendo, assim, a enorme confusão que outros autores fazem.

Gostaria, se possível, fazer algumas indagações ao prof:

a) O direito como fenômeno, existe antes do homem ?
b)É possivel realizar uma distinção entre aquele e o direito como dado cultural, portanto, posterior aquele?
c) É possível ao direito dar uma resposta certa para determinada relação jurídica, ou no direito é aceito várias respostas para uma só relação jurídica ?
d) Direito é ciência ? Ou estamos no campo da argumentação apenas ?

Respondo:

a) o direito é fenômeno cultural, portanto afeto ao homem em relação (o eu-tu do primeiro capítulo do livro). Pontes, homem do seu tempo, viu o fenômeno jurídico também das relações vegetais e inorgânicas, por excesso de biologia e física. Entenderemos o pensamento de Pontes no "Sistema..." se analisarmos a obra de Ihering, por exemplo, e outros pensadores presos ao positivismo do final do século XIX e da primeira quadra do século XX.

b) Só há direito onde há sociedade, onde o homem se põe diante de outro homem e a sua conduta precisa se pautar por normas cogentes de convivência.

c) contrafaticamente - a moda do juiz hércules de Dworkin - devemos trabalhar com uma resposta certa, embora haja uma arco de possíveis respostas corretas, superadas por um processo racional de otimização. André, o plano da incidência é uma instância não-empirica, contrafática, como a norma fundamental de Kelsen. Impõe ao aplicador uma vinculação teorética de buscar sempre a melhor resposta (que não significa a única resposta, senão metodicamente). A vantagem do pensamento pontesiano está justamente em fechar as portas para o ceticismo hermenêutico ou para o divórcio entre texto e significado. O plano da incidência é justamente o mundo do pensamento, a certeza que o aplicador tem de que o ordenamento jurídico não é criação sua, subjetiva, mas que é um algo que está aí (fenômeno que denominei de "istidade"), apropriado por todos e cada um, de modo que diante de uma relação jurídica, de um ato jurídico, de uma norma jurídica, o aplicador busca sempre a conformação entre norma e fato dentro do diálogo intersubjetivo no qual estamos sempre inseridos.

d) Direito é ciência, não é apenas prudência. Há a ciência jurídica (sobrelinguagem) e o direito (linguagem objeto). A argumentação faz parte do processo da linguagem objeto, mas não exaure a sobrelinguagem. Toda ciência, empírica ou não, padece das mesmas dificuldades e limites ínsitos à linguagem. A ciência do direito, como a ciência da matemática, busca conhecer, explicar e em certa medida construir o objeto estudado. Antes de Einstein não se podia pensar, como objeto de estudo, a física quântica. As susa fórmulas, em certo sentido, criaram um objeto que ali já estava, sem a interpretação da linguagem. O mesmo ocorre com o Direito. A linguagem cria e estuda o que ali já estava, antes dela, porém sem as marcas do humano, sem ingressar nas relações intersubjetivas. Eis aí o sentido do mundo 3 de Popper.

As suas perguntas não são simples de responder. Mereceriam um livro. No fundo no fundo, o meu livro cuida delas.

Comentários

Juspublicista disse…
Lendo Eros Grau, fui convencido do Direito como "prudência", e não "ciência". Acho que vê-lo como ciência é ainda resquício do positivismo do início do séc. XX.

Qual o livro do professor, citado na postagem?
Unknown disse…
Ao contrário; é justamente o inverso. É o pressuposto do positivismo do início do século XX que criou a necessidade de excluir a ciência jurídica do rol das ciências, vendo-a como um discurso articulado (apenas uma prudência). Essa visão de Eros Grau é pré-hermenêutica, partindo do pressuposto de que apenas os objetos físicos ou matemáticos pudessem ser estudados por uma ciência. Ora, Gadamer demonstrou que todo saber é hermenêutico, desarticulando inclusive a distinção ainda hoje em moda entre ciência do espírito e ciência da natureza. Quem se aproxima de um objeto físico e faz sobre ele um discurso científico está interpretando a realidade que se põe diante dele, tanto quanto o jurista o faz quando se aproxima de um sistema jurídica específico. Desde Gadamer, portanto, sabe-se que o discurso científico, seja ele sobre qual objeto for, é sempre hermeneuticamente construído. Perceba, portanto, que tratar o direito (ciência, não o objeto)como prudência é pagar tributo aos pressupostos teóricos do positivismo do século XX, e não o contrário.
Juspublicista disse…
Obrigado pela excelente resposta.

Ainda guardo, data venia, minhas convicções; mas estou sempre aberto a repensá-las, através da reflexão e do estudo.

Grato mais uma vez, por esse interessante enfoque.

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