Ações eleitorais e tutela coletiva (I)

Tem sido comum a afirmação segundo a qual as ações eleitorais seriam ações de natureza coletiva, fazendo parte daquele microssistema processual denominado de tutela coletiva. Este é um tema sobre o qual escrevi na 10ª edição do meu livro Instituições de direito eleitoral, rechaçando a aplicação da tutela coletiva às ações eleitorais. Procurei mostrar ali que havia um componente ideológico na tese, buscando ampliar os legitimados ativos, sobretudo através da inclusão de sindicatos e associações, cujas vinculações políticas, dizia eu, são consabidos: há sindicatos que nada mais são que extensões de partidos políticos de esquerda, havendo entre eles uma relação tal que pouco se pode dizer sobre onde uns começam e o outros terminam.

Um dos pontos que levaram processualistas a sustentar a coletivização das ações eleitorais seria o interesse difuso, comum a todos os eleitores, de eleições limpas e sem a influência ilícita do abuso de poder econômico ou político. Tais interesses difusos, que estariam à base de um devido processo legal coletivo, não se contentariam com uma tutela jurídica inspirada nos postulados das tutelas de assento subjetivista, uma vez que "o bem da vida não se restringe à titularidade de quem quer que seja" (JORGE, Flávio Cheim e SANTOS, Ludgero F. Liberato dos. "As ações eleitorais e os mecanismos processuais correlates: aplicação subsidiária do CPC ou do CDC c/c LACP?", in: RBDE | Belo Horizonte, ano 4, n. 6, p. 63-81, jan/jun. 2012, p.73).

É inegável que há interesses difusos a eleições limpas e equilibradas. No macroprocesso eleitoral, cabe ao Ministério Público, como fiscal da lei, a legitimidade para ajuizar todas as ações eleitorais, visando proteger e zelar pela observância do ordenamento jurídico eleitoral. Neste sentido, dê-se razão às ponderações de Cheim e Liberato, quando dizem que "sem se socorrer ao direito processual coletivo para explicar a legitimação ativa das ações eleitorais, torna-se injustificável a ausência de legitimação do eleitor, participante do processo eleitoral, para o manejo destas. A não aplicação de algumas técnicas coletivas quanto à coisa julgada, a legitimidade para agir cria uma manifesta ausência de harmonia entre direito material e o instrumental colocado à disposição de sua proteção" (JORGE, Flávio Cheim e SANTOS, Ludgero F. Liberato dos. "As ações eleitorais..., cit., p.76).

Nada obstante, se é certo que há os interesses difusos em que sejam justas as eleições, neles não se esgotam o macroprocesso eleitoral. A procedimentalidade estrutural das eleições faz com que o ordenamento jurídico, desde a própria Constituição Federal, estabeleça quais os pressupostos necessários para que o nacional - aliás, a própria nacionalidade é um desses pressupostos - possa validamente concorrer a um mandato eletivo. As condições de elegibilidade nada mais são do que a delimitação inicial de quem pode e quem não pode disputar as eleições; é dizer: nem todo eleitor, nem todo portador de cidadania, é chamado a concorrer a um mandato eletivo. É por isso que aqueles interesses difusos, direitos assubjetivados que são, passam por um processo de puntualização, de individualização, até que surja o direito de ser votado, a elegibilidade, como direito público subjetivo absoluto, frente a todos, inclusive o Estado. O fato jurídico do registro de candidatura estabelece uma nova situação jurídica para o nacional, que passa a ser elegível, podendo exercitar poderes e faculdades que enchem o conteúdo do direito subjetivo público de ser votado (elegibilidade).

Temos dois núcleos distintos de interesses em jogo: aqueles difusos, de eleições justas e sem interferências indevidas, e aquel'outros, subjetivados em candidatos e partidos políticos, cuja tutela jurídica possui natureza diversa dos primeiros. O que o ordenamento jurídico eleitoral deve é estabelecer um equilíbrio entre ambos os núcleos, observando a peculiaridade do bem da vida regrado, evitando que a existência de interesses difusos emasculem a proteção dos direitos subjetivos, de um lado, e que, de outra mão, os direitos subjetivos nascidos do registro de candidatura não sejam mais do que de fato são: instrumentais à realização da democracia. Esta tensão essencial deve encontrar no ordenamento jurídico um cuidadoso equilíbrio, evitando a eternização dos litígios e a insegurança quanto a higidez do resultado das urnas, bem como delimitando a extensão dos legitimados e do campo de potencial litigiosidade. É dizer, não apenas se deve delimitar a litigiosidade no tempo como também em sua quantidade e qualidade.

Sobre isto, trato na próxima postagem.

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