A parte final da minha entrevista a Yuri Brandão

Blogue: Em qualquer livro de Teoria Geral do Direito, logo no primeiro ano de curso, aprende-se que, em geral, a lei tem efeitos ex nunc (“desde agora”), e não ex tunc (“desde então”); ou seja, eles alcançam um fato que ocorra a partir da vigência da lei, sem retroação prejudicial. No entanto, vários intérpretes do Direito, como o presidente nacional da OAB, por exemplo, não percebem que uma coisa é o tempo da nova lei, e outra, bem diferente, é o tempo do registro da candidatura. Aliás, o senhor ensina, em Instituições de direito eleitoral, que, para o deferimento do registro de candidatura, faz-se necessário preencher os requisitos de elegibilidade e não haver sanção de inelegibilidade PREEXISTENTE.

Diante do exposto acima, como explicar que muitos juristas e militantes do Direito não compreendam algo relativamente simples?

Adriano Soares: Uma coisa é meditar sobre um dado objeto para conhecê-lo. É uma atitude metódica, científica. Outra coisa, bem diversa, é ter uma finalidade a ser alcançada, uma ideologia, e tentar enquadrar a realidade nessa bitola de interesses predefinidos. A OAB, a AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros] e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] defendem uma tese ideológica, sem nenhuma preocupação jurídica. E os que têm se manifestado em defesa da lei “Ficha Limpa”, com raras exceções, desconhecem Direito Eleitoral, além de violentarem a teoria geral do Direito. Defendem uma tese, tentando dobrar os institutos jurídicos àquilo que ideologicamente os atende.

A questão aqui, Yuri, é menos jurídica e mais ideológica. Hoje, há um perigoso movimento de relativização dos direitos e garantias individuais. Conseguiram transformar o princípio do devido processo legal (due process of law) em coisa de advogado de bandido. Uma visão embotada do momento em que vivemos. A sociedade organizada deseja, legitimamente, trato probo da coisa pública, combate ao crime organizado de qualquer natureza, mecanismos eficazes de punição dos que praticam atos ilícitos. Devemos estar de acordo com esses princípios, que são republicanos e saudáveis. Devemos também estimular essas bandeiras éticas na vida pública, privilegiando aqueles que as defendem. O problema, nada obstante, é como executamos, tornamos concretos, esses princípios.

Não se pode tolerar, como instrumento de combate à criminalidade, a erosão de garantias individuais, tampouco o menosprezo a direitos fundamentais, que são cláusulas constitucionais de proteção. Uma dessas históricas conquistas é justamente a segurança jurídica. Leis retroativas de conteúdo sancionatório ferem a consciência jurídica ocidental. E isso é tão verdadeiro que, no caso da lei “Ficha Limpa”, o Tribunal Superior Eleitoral teve que fazer um enorme esforço argumentativo para, a um só tempo, negar a retroatividade da lei e, pasmem!, autorizar a sua retroatividade. Como? Dizendo que a inelegibilidade decorrente de ato ilícito não seria – como de fato é! – uma sanção, mas sim uma condição para o futuro registro. Deu a impressão de que a lei estaria sendo aplicada para o futuro, quando, em verdade, o que se fez foi aplicá-la a fatos passados, atribuindo-lhes sanções gravíssimas.

A insegurança jurídica, neste caso, é de dupla face: de um lado, esvazia o conceito clássico de inelegibilidade como sanção aplicada a fatos ilícitos, deixando embaraçada a própria jurisprudência do TSE; de outro, cria um atalho para violar o art. 16 da Constituição Federal de 1988, que prescreve o princípio da anualidade da legislação eleitoral [regras novas só passam a valer um ano depois de aprovadas] — uma garantia dos eleitores, dos candidatos, dos partidos políticos e da própria democracia. Até ontem, por exemplo, dizia-se que não cabia recurso contra a diplomação em caso de ausência de condições de elegibilidade, mas apenas em caso de inelegibilidade. Vem agora o TSE e diz que a inelegibilidade não é sanção, é condição. Ou seja, que tudo é a mesma coisa. Tratou igual o que é absolutamente desigual, misturando o que é lícito com o que é ilícito. E vice-versa.

Blogue: A mim me parece que é preciso tratar o Direito Eleitoral como ciência! Muitos pensam que esse ramo jurídico se resume ao praxismo e às conveniências que visam a defender as bandeiras de plantão. Mas é justamente a estatura científica que evita os casuísmos e possibilita que alguns conceitos jurídicos fundamentais, como elegibilidade e inelegibilidade, sejam tratados a sério.

Adriano Soares: O Direito Eleitoral está naquela infância teórica que chamo de praxismo, em que a maior parte da doutrina limita-se a repetir acriticamente as decisões do TSE. Isso faz com que importantes institutos jurídicos, como elegibilidade e inelegibilidade, tenham um tratamento superficial, equivocado e, aqui e ali, oportunista. Todo o esforço da minha obra é justamente o de dar uma fundamentação teórica a esses institutos, conferindo tratamento jurídico ao Direito Eleitoral, com esteio na teoria do fato jurídico de cariz [de feição, de base] pontesiano [Pontes de Miranda]. Quando damos tratamento sério ao ordenamento jurídico, fugimos do subjetivismo e do perigoso relativismo hermenêutico.

Blogue: Segundo o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Veloso, a Carta Magna de 1988 estabelece que uma lei complementar criará as novas hipóteses de inelegibilidade. Até aí, tudo bem. Mas o ex-presidente do STF e do TSE assevera, ainda, que não há a exigência de trânsito em julgado (fim do processo), de modo que, “se há uma condenação em segunda instância, a presunção de inocência está, na melhor das hipóteses para o interessado, altamente abalada”. Outra coisa: o art. 16 da Constituição é claro: regras eleitorais só podem entrar em vigor UM ANO DEPOIS DE APROVADAS, mas o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) argumenta que a lei sob comento não se enquadra nesse caso, pois não trata especificamente de um período eleitoral etc.

Adriano Soares: Eu posso concordar que a decisão condenatória de segunda instância deixa a presunção de inocência abalada. Mas esse debate legítimo sobre os limites da presunção de inocência deve ser feito à luz da Constituição. Foi ela que prescreveu que ninguém será considerado culpado sem sentença penal transitada em julgado. Foi ela que prescreveu, no art. 15, III, que a suspensão dos direitos políticos decorrerá de sentença penal transitada em julgado [e, mesmo assim, apenas enquanto durarem seus efeitos]. Se há um desejo de retorno às normas da Constituição de 1967, do regime militar, é algo a ser tratado em uma reforma constitucional. O que não podemos é ficar ao sabor das opiniões pessoais e jogar no lixo a Constituição em vigor.

O MCCE tem méritos ao trazer para a pauta política a questão do combate à corrupção eleitoral. Mas, quando os seus representantes ingressam em discussões jurídicas, claudicam em demasia. Tentam criar teses para justificar, a qualquer custo, as soluções que apresentam, mesmo que maltratando a teoria jurídica. Resultado: a abertura indiscriminada e perigosa para o irracionalismo jurídico. Querendo muitas vezes fazer o bem, criam um campo minado para a democracia, para as liberdades públicas e para a segurança jurídica.

Por estarem muitas vezes tão comprometidas com essa lógica do “pega e esfola”, essas entidades tentam patrulhar inclusive o Poder Judiciário. Tentam e, por vezes, conseguem. É o caso do Tribunal Superior Eleitoral, que se submeteu tristemente à patrulha. Chega-se ao ponto do Jornal Nacional entrevistar o presidente da AMB, um juiz de primeira instância, para comentar e criticar uma decisão do ministro do STF, Gilmar Mendes, que deu efeito suspensivo a um recurso em favor de certo senador [Heráclito Fortes, do DEM do Piauí], liberando-o da incidência da lei “Ficha Limpa”. Depois, vem o presidente da OAB dar lições ao ministro do STF. O cerco ideológico aos tribunais é um grave risco à democracia!

Blogue: O art. 2º da lei complementar 135/2010 (“Ficha Limpa”) prevê isto na alínea e do inciso I:

“I –

(…)

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

(…)

9. contra a vida e a dignidade sexual”.

Dignidade sexual? Onde a lei especifica quais os crimes contra a dignidade sexual? Como precisar e valorar isso? Um político sadomasoquista, por exemplo, é digno? Ou ficará a cargo de o julgador – tomara que seja um liberal… – dizer o que se pode ou não fazer entre quatro paredes? Desculpe-me o sarcasmo, mas receio que os advogados, especialmente os eleitoralistas, agora terão de oferecer serviços bastante domiciliares… Passarão, portanto, a assistir O cliente e AO cliente, ou seja, assisti-lo (ajudá-lo) para que não incorra em indignidade sexual e assistir a ele (ver, presenciar) em cenas picantes com alguém. E nem adianta o advogado pensar em lançar mão daquela clássica venda nos olhos, que caracteriza, numa simbologia do Direito, a deusa grega Têmis. Com a venda, não poderia enxergar nada, não é?

Ou, na melhor das hipóteses (repito: na melhor das hipóteses), a pessoa está salva pelo parágrafo 4º desse mesmo art. 2º? Leia-se: “A inelegibilidade prevista na alínea e do inciso I deste artigo não se aplica aos crimes culposos e àqueles definidos em lei como de menor potencial ofensivo, nem aos crimes de ação penal privada”.

Adriano Soares: (Risos) Também não chega a tanto, Yuri. Aliás, o advogado apenas deve assistir o cliente. Não se confunde com ele nem deve agir por ele. O advogado que começa a agir com ou pelo cliente deixou de ser advogado e passou a ser cúmplice ou parceiro. A dignidade da advocacia está justamente nisto: garantir a cada cliente o seu direito de defesa, protegê-lo de eventuais excessos do Estado, permitir que haja um julgamento justo. Se o advogado começa, por exemplo, a criar provas e/ou a falsificar documentos, deixou de ser advogado e passou a ser criminoso. A sua pergunta jocosa [irônica] foi oportuna para que eu pudesse falar um pouco sobre o papel do advogado.

No que diz respeito à norma citada por você, penso ter demonstrado a sua natureza penal, de um lado, e a sua falta de proporcionalidade, de outro. É aquilo sobre o que já falei: se se matar um papagaio ou uma pessoa, a sanção é a mesma: 8 anos após o tempo do processo e de cumprimento da pena. Falta, evidentemente, um senso de razoabilidade.

Blogue: Ainda no art. 2º da famigerada lei, lemos isto:

“m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário [grifo nosso]”.

Imaginemos a seguinte situação: um vereador, além das atividades políticas de praxe, labuta na advocacia; por alguma alegada “infração ético-profissional”, a OAB (“órgão profissional competente”) decide que o cidadão será “excluído do exercício da profissão”. Em último caso, de duas uma: ou ele não recorre ao Judiciário, ou até o faz, mas a anulação ou suspensão do ato que o excluiu do exercício profissional pode demorar algum tempo.

E agora, a “decisão sancionatória do órgão profissional”, que é de âmbito administrativo, tem o condão de mantê-lo inelegível até que a Justiça se manifeste? (Isso se considerarmos que ele tenha recorrido ao Judiciário, mas pode não fazê-lo.)

Adriano Soares: Qualquer pessoa de bem poderá se transformar em um “ficha suja”. Por exemplo: alguma norma de órgão profissional poderá ter como infração ético-disciplinar a falta de pagamento de anuidades; poderá colocar como sanção ético-disciplinar a violação a princípios fluidos. Certo, a matéria será possivelmente objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, que poderá suspender a sanção. Porém, esse é um controle posterior, com evidentes limites para sindicar a decisão administrativa. Será apenas uma apreciação de aspectos formais, sem se imiscuir [misturar-se, intrometer-se] no mérito da sanção aplicada.

Outro aspecto problemático é o seguinte: o risco do bis in idem [repetir sobre o mesmo; a mesma coisa duas vezes], ou seja, a sobreposição de sanções da mesma natureza ao mesmo fato. Se a infração ético-disciplinar for também hipótese de ilícito penal, por exemplo, poderemos ter a inelegibilidade da alínea “e” cumulada com a da alínea “m”. Esse cúmulo pode ser coetâneo [contemporâneo], ou não, a depender de como ocorra, na prática, a aplicação das respectivas sanções.

São pontos que merecerão, ainda, uma reflexão dos tribunais, estou certo disso.

Blogue: Para encerrar as considerações sobre a lei complementar 135/2010 (“Ficha Limpa”), o senhor poderia explicar como fica a situação do ex-governador Ronaldo Lessa? Especulações há várias, mas qual a real situação jurídica dele?

Adriano Soares: Se for aplicada a lógica que presidiu a decisão do TSE, estará ele inelegível até 2012 [a contar da eleição de 2004, temos oito anos até 2012]; se for aplicado o que defendo, a ele não poderia ser aplicada a Lei Complementar 135 (“Ficha Limpa”), porque ele já teria cumprido a sanção de inelegibilidade por 3 anos. Na prática, creio que ele concorrerá sub judice, com riscos concretos para a sua elegibilidade. Mas penso que, ao fim e ao cabo, o Supremo Tribunal Federal vai sanar essas estupidezes possibilitadas pela tal lei.

Blogue: O Partido Socialista Brasileiro (PSB) propôs, há alguns anos, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 3.592-4/DF) contra o art. 41–A da lei 9.504/97, cuja constitucionalidade terminou sendo reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Em determinado trecho do citado artigo, está prevista a “cassação do registro [de candidatura] ou [em caso de o nacional ter sido eleito, é claro] do diploma”. O senhor não admite a cassação do registro de candidatura; em vez dela, defende que a sanção seria deinelegibilidade cominada simples, ou seja, aquela inelegibilidade que, na sua visão, só pode ser aplicada (“cominada”) DURANTE O PLEITO ELEITORAL, daí ser “simples”.

Por que o senhor discorda, nesse ponto, do STF e de outros eleitoralistas?

Adriano Soares: Veja, a discussão sobre a constitucionalidade do art. 41–A estava em saber se ele previa ou não uma hipótese de inelegibilidade. Se se tratasse de inelegibilidade, seria inconstitucional, porque as hipóteses de inelegibilidade apenas podem ser criadas por lei complementar. Mais uma vez, a Justiça Eleitoral e, depois, o STF, premidos [coagidos, pressionados] pelo fato da lei ordinária ser de iniciativa popular, criaram um fórmula artificial para salvá-la.

Esse casuísmo da jurisprudência eleitoral é um mal decorrente, dentre outras razões, do infantilismo da teoria jurídica eleitoral. A inelegibilidade passa a ser uma palavra oca, sem conteúdo, que pode ser usada como Bombril: nem mais sanção seria, sendo sabe-se lá o quê. Precisamos, em ciência, ter uma coerência no uso das palavras; em Direito não é diferente, ou então caímos naquilo que os lógicos chamam de “sem sentido deôntico”, ou seja, as normas deixam de cumprir a sua finalidade (regrar a vida humana) e passam a ser um enunciado contraditório.

O que nós dizíamos quando o art. 41–A entrou em vigor? Ele é inconstitucional porque alberga hipótese de inelegibilidade através de lei ordinária, quando apenas poderia ser, segundo a Constituição, por lei complementar. Simples assim. Mas o hipermoralismo eleitoral não quer saber o que é juridicamente sustentável ou não; interessa a sua sanha macartista, ainda que a Constituição seja desrespeitada.

Este é o ponto: estamos sempre criando atalhos para sustentar essas normas inconstitucionais, mas com apelo popular, conferindo, assim, ao ordenamento jurídico um tratamento bizarro, sem pé nem cabeça, alimentando a insegurança jurídica. É disso que se trata. A mim me parece que não podemos negociar a aplicação adequada da Constituição; devem-se evitar soluções casuísticas que, ao final, se voltarão contra a própria sociedade.

Blogue: Por que, segundo seu pensamento (e me parece ser a essência dele), não podemos considerar que o cidadão nacional sem registro de candidatura junto à Justiça Eleitoral é elegível? Por que um cidadão só passa a ser elegível quando é expedido o registro de candidatura?

Se a elegibilidade é o “direito de ser votado”, por que ela não existe, ainda que abstratamente, em qualquer época? Falo “abstratamente” porque estou ciente de que esse direito só pode ser efetivado (concretizado) numa situação concreta (a eleição).

A lógica que tento sustentar é esta: o nacional tem o direito de ser votado – e isso se daria, abstratamente, em qualquer período –, mas a validade e a efetivação desse direito, e não seu nascimento, é que dependeriam do registro de candidatura.

Adriano Soares: É disso que devemos fugir, Yuri: o conceitualismo jurídico, o pensar abstratamente os institutos, como se eles não tivessem um conteúdo próprio. O jurista faz a sua reflexão do ordenamento, buscando compreendê-lo, dentro de uma visão sistemática.

Elegibilidade é o direito de ser votado, de praticar atos de campanha. Nasce do registro de candidatura e se extingue com a proclamação dos resultados. A cada eleição, tenho de estar preenchendo as condições de elegibilidade (fato jurídico lícito) e não estar incidindo em nenhuma inelegibilidade cominada (efeito de fato jurídico ilícito, de natureza sancionatória). A lógica que você tenta sustentar não atenta para o fato de que a Constituição fixa pressupostos para o nascimento da elegibilidade, entre eles o alistamento eleitoral e a idade mínima exigível para concorrer a determinados cargos. Como poderíamos sustentar, diante da Constituição, que todos seriam elegíveis, mesmo antes de nascer o direito de votar, mesmo antes de ser eleitor?

Outra coisa, note como andam mal os que sustentam ser a inelegibilidade cominada uma condição, e não uma sanção. Ficam como a criança em um quebra-cabeça cujas peças não se completam nem se encaixam.

Não podemos raciocinar juridicamente com um discurso de ciência política. São estratos diferentes de discursos. Essa contaminação muitas vezes gera um grande problema para a dogmática jurídica, que se arrisca em uma confusão metodológica preocupante.

Blogue: O senhor poderia esclarecer, em linhas gerais, aquilo que será permitido e proibido na campanha eleitoral deste ano? Alguns pré-candidatos estão recebendo, por exemplo, multas pelo uso de adesivos.

Adriano Soares: Yuri, as regras são muito parecidas com as das eleições passadas. A novidade é essa lei “Ficha Limpa” e pouca coisa mais. Veja essa questão dos adesivos, por exemplo. Eles não têm a menor importância no processo eleitoral, não geram um único voto, mas se gasta muita energia e tempo com isso. Seja como for, é sempre um ponto polêmico. E nunca entendi o porquê.

Blogue: Por falar em campanha, o que configura, de fato, a campanha antecipada: divulgar o nome do pré-candidato ou divulgar o nome do pré-candidato e o cargo a que ele concorrerá? O presidente Lula, por exemplo, em face da pré-candidatura de Dilma Rousseff, já recebeu, até o momento em que escrevo, 6 (seis) multas do TSE. Se eu fosse candidato e dissesse que essas multas podem chegar a 45, eu poderia ser interpelado por propaganda subliminar? Como definir, afinal, a existência desta?

Adriano Soares: Esse é um tema ainda pendente de delimitação legal, mesmo com o atual art. 36–A da lei eleitoral. Em geral, considera-se propaganda eleitoral antecipada aquele discurso do nacional que, antes de 5 de junho, implica pedido direto ou indireto de votos, mencionando uma candidatura específica. A lei 12.034/2009 foi mais tolerante do que a legislação anterior, abrandando a própria jurisprudência do TSE.

No Brasil, há uma excessiva tutela da propaganda eleitoral, com enormes limitações. A nossa democracia é tutelada e, curiosamente, a partir de uma cobrança dos formadores de opinião. Enquanto nos Estado Unidos abre-se espaço para a propaganda e circulação de informação, aqui nós tentamos ao máximo limitá-la. As razões para isso mereceriam, também, um bom estudo sociológico.

Blogue: Na obra A sociedade aberta e seus inimigos, o filósofo austríaco Karl Popper chama de “sociedade fechada” aquela sociedade coletivista, tribal, mística, que se assemelha a um organismo; de outro lado, caracteriza como “sociedade democrática” justamente aquela na qual os indivíduos deparam com escolhas e decisões pessoais.

A democracia brasileira, de modalidade representativa, encontra, por meio do voto livre, a mais legítima e política decisão pessoal. Muitos contrapõem a isso o fato de a população pobre em regra não ter discernimento suficiente para fazer escolhas sérias, não submetidas a alguma necessidade em tese irresistível. O livre-arbítrio não seria, pois, tão livre assim (isso lembra o experimento mental “demônio de Laplace”, do matemático francês Pierre-Simon de Laplace). Não obstante eu reconheça alguma razoabilidade no raciocínio, aprendi que democracia é um longo processo, é uma construção histórica que não deve ceder espaço ao paternalismo de uma casta de iluminados que vai decidir o que é melhor para a maioria.

Nesse sentido, o senhor pensa que a “sociedade democrática” de Popper pode, paulatinamente, retroceder àquela outra, ou seja, à “sociedade fechada”? Ou todos os atuais sintomas de sobrevalorização do coletivo, e com tara punitiva, não são tão ameaçadores assim?

Muito obrigado pela entrevista.

Adriano Soares: Regressão pode haver; tudo dependerá de como nós vamos conduzir o processo. A democracia é uma conquista diária. Afinal, o poder não gosta de limites, não aceita condicionamentos. A democracia é um sistema em que o poder encontra limites nas leis votadas, que expressam o desejo e os sonhos da maioria, nada obstante sem que as minorias sejam destruídas, é claro. O sujeito, o indivíduo, desempenha um papel fundamental, porque a sua realização pessoal é um sonho democrático. Não se pode imaginar que possa haver democracia sem o respeito às garantias individuais, em que a visão coletivista e totalitária se imponha sempre. Não!

Acredito, Yuri, na democracia brasileira e no seu amadurecimento. Encontraremos meios democráticos, portanto, para a superação das divergências sobre essa lei, sobre as diversas formas de moralismo eleitoral, sobre o irracionalismo jurídico. E ela, a superação, se dará quando essas fórmulas mágicas se mostrarem justamente o que são: simples miragem, atalhos ingênuos.

Eu que agradeço pela entrevista.

Comentários

Caros Professores Yuri e Adriano Soares:

Adorei a segunda parte da entrevista. O pensamento de nosso eleitoralista, encontra em meu espírito ampla adesão, pois ele traduz, com competência intelectual, inteligência e precisão o que eu gostaria de expressar, quando fosse questionado ou tivesse de expor a respeito.

Há, de minha parte, uma identificação muito forte com Adriano, permita-me que eu assim o chame.

Tenho frequentado tanto este blog - "já tenho embebido-me um pouco de sua alma, pois sua alma, um pouco, está em seu pensar" -, que já me sinto, indevidamente, íntimo de seus pensamentos teóricos e "práxicos" sobre os temas que debate.

Destaco do Prof. Adriano frases e expressãos que designam profundas reflexões, fazendo-nos refletir sobre a seriedade de muito do que tem dito neste blog e em seus livros (ainda não tive o privilégio de ouvi-lo falar em conferência - uma vez conversamos ao telefone!):

“a infância teórica”, "o praxismo", “a doutrina (que) limita-se a repetir acriticamente as decisões do TSE”.

“Querendo muitas vezes fazer o bem, criam um campo minado para a democracia, para as liberdades públicas e para a segurança jurídica.”

“moralismo eleitoral, (...) irracionalismo jurídico.”

Forte abraço, com o reconhecimento e alegria de leitor do Ruy Samuel

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