O óbvio, a inelegibilidade e a Constituição

É preciso não se perder no burburinho. Quando muitas são as vozes, quando as opiniões são sortidas, começa uma perda de sentido, as palavras se desbastam, os conceitos se esfumam como se fossem ocos.

A discussão sobre a lei dos fichas limpas virou um burburinho, em que muitos falam e não poucos desconhecem sobre o que estão falando. É que o falar passou a valer por si mesmo nesse mundo midiático, feito de celebridades instantâneas à procura dos refletores ou do primeiro microfone. "Qual a sua opinião sobre a lei dos fichas limpas?", pergunta o repórter àquele que não estudou direito eleitoral, começando ele a responder, não antes de um pigarro leve, buscando mostrar profundidade, uma atitude grave e meditativa sobre a questão posta: "Veja bem, é uma lei que mudará os costumes políticos, blá blá blá".

E não poucos passam a emitir as suas opiniões, muitos deles analistas políticos que opinam sobre o que desconhecem, simplificando os problemas da lei ao nível dos bons, que a defendem, e dos maus, que a querem destruir. E contam para avalizar essa postura com o pronunciamento de entidades jurídicas respeitadas, nada obstante falando sobre o que não conhecem ou, tanto pior, sobre o que conhecem demais e fingem desconhecer.

A decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão sobre a lei dos fichas limpas foi tomada em processo de José Sarney Filho. Paradigmático. E logo passou a ser olhada de esguelha, como sendo produto do coronelismo nordestino e da submissão do Poder Judiciário local à família Sarney. É uma opção de abordagem. Mas a decisão do TRE/MA, com a sua simplicidade, desnuda a questão, como naquela fábula de Andersen, em que a criança diz o que todos vêem mas não querem ver: "O rei está nu", gritou o menino; "A inelegibilidade é uma sanção", bradou o TRE/MA.

Estamos em uma época em que chega a ser revolucionária a afirmação constante e reiterada do óbvio. Até o óbvio ululante não ulula mais. A natureza sancionatória da inelegibilidade aplicada a ato ilícito era, inclusive, um dos axiomas da teoria clássica. Daí a razão para o outro axioma: todos os brasileiros seriam elegíveis; a elegibilidade seria a regra. Assim, seria a exceção a inelegibilidade, uma sanção que retiraria aquilo que já era comum a todos indistintamente. De repente, para acomodar uma lei que flerta despudoramente com a inconstitucionalidade, passaram a sustentar algo impensável: a inelegibilidade, vejam só!, seria na verdade uma condição de elegibilidade ("A inelegibilidade não é sanção; é condição", repetiram do Deputado Federal Flávio Dino ao Presidente do TSE, Ricardo Lewandowiski). Mas como se deu a transubstanciação da inelegibilidade? Como uma sanção aplicada a atos ilícitos passou a ser algo lícito, um simples requisito? Como se pode chegar a tanto sem desbastar a Teoria Geral do Direito, o discrime entre a licitude e a ilicitude, a conformidade e a contrariedade a direito?

"A inelegibilidade é uma sanção", gritou o TRE/MA. E disse apontando para a Lei Complementar 135/2010: é o art.22, XIV, que o diz explicitamente, é a lei dos fichas limpas que chama a inelegibilidade pelo seu sobrenome: sanção, pena, coima.

Está na hora de fazermos uma reflexão sobre isso. Está na hora da Constituição ser ouvida, porque ela está gritando no meio desse burburinho horrível.

Comentários

Thiago Maia disse…
Excelente análise sobre a questão. A abordagem da mídia peca ao enfatizar a parte que foi beneficiada pela decisão, tentando retirar a legimitidade da decisão. Importante destacar que a decisão, disponibilizada no post anterior, está muito bem fundamentada, não se podendo acusar o TRE/MA de ter utilizado qualquer subterfúgio ou brecha na lei, como a mídia tem noticiado, para livrar o Fernando Sarney. Esse trecho do seu post para mim é emblemático: Mas a decisão do TRE/MA, com a sua simplicidade, desnuda a questão, como naquela fábula de Andersen, em que a criança diz o que todos vêem mas não querem ver: "O rei está nu", gritou o menino; "A inelegibilidade é uma sanção", bradou o TRE/MA. Ou seja, O TRE/MA não provocou nenhuma revolução na teoria das inelegibilidades, apenas constatou o óbvio, sem ofender nenhuma regra ou princípio jurídico.
Elmana disse…
Teve uma parte dessa decisão que me chamou a atenção, quanto a correta interpretação que deve ser dada ao art. 1., I, j. Realmente o texto é confuso. O MP entendeu que sao inelegíveis qualquer pessoa que tenha contra si uma decisão condenatória ou proferida por órgão colegiado pela prática de qualquer dos ilícitos enumerados pelo dispositivo legal, sendo suficiente que possam implicar em cassação do registro ou diploma. Já o advogado de defesa afirmou que é necessário que a decisão condenatória implique efetivamente na cassação do registro ou do diploma para que o condenado se torne inelegível. Data venia, concordo com o advogado quanto a esse ponto, uma vez que todos os ilícitos mencionados, abstratamente podem implicar na cassação do registro ou do diploma. Mas ainda tenho mais uma dúvida... só a condenação por condutas vedadas aos agentes´públicos é que precisam implicar na cassação ou todos os ilícitos eleitorais mencionados? Não sei se a expressão "que impliquem cassação do registro ou do diploma" refere-se a todo o dispositivo ou se apenas a sua parte final quando menciona as condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais. Se alguém puder expor sua opiniao aqui, seria interessante.
Unknown disse…
Estou a fazer um trabalho sobre o tema e entendo que a primeira parte do art. 1º, I, j deixa bem claro (restringe e delimita) quais condutas implicam em inelegibilidade. A segunda parte da norma (que a meu ver está em aberto) e vem depois da conjunção "ou", mostra que o legislador quis permitir que quaisquer condutas (já elencadas legalmente ou não), mas, EM CAMPANHA, ou seja, delimitando a atuação da norma no tempo. O que se depreende que as condutas não abarcadas no artigo 1º, I, j, são passíveis de inelegibilidade pelo candidato se este, agente público, praticar tais atos (implicando em sua cassação) durante o pleito.
O perigo está na classificação de determinada conduta vedada aos agentes públicos em campanha já que a norma as deixa em aberto, abrindo margem a interpretações diversas e parciais conforme o caso.

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