Reforma política e listas fechadas

A Operação Castelo de Areias, da Polícia Federal, colocou o financiamento de campanha no centro do debate político. Depois, a notícia de que empresas do ramo de construção civil faziam doações a partidos políticos por meio de uma associação chamou a atenção para brechas na lei, que permitiriam a doadores preservar a sua identidade, usando o partido político como entreposto para doações eleitorais a candidatos. O Tribunal Superior Eleitoral revelou ter interesse no assunto, com a finalidade de fechar as portas para esse procedimento.

Como sempre ocorre nessas situações, o Congresso Nacional enfrenta os temas com o retorno à pauta da chamada reforma política, quer seja através de ajustes cosméticos quer seja por meio de propostas mais profundas.

Atualmente, voltou à agenda o espírito do projeto que tinha como relator o deputado federal Ronando Caiado, que pretendia mudar as eleições proporcionais, impondo as chamadas listas fechadas dos partidos políticos: os eleitores seriam chamados a escolher as legendas, cuja lista de candidatos seria definida internamente, através de convenções, inclusive a ordem de preferência para exercer os mandatos eletivos, a depender da votação alcançada (aqui).

Os que defendem essa ideia, alegam que esse mecanismo fortaleceria os partidos políticos, passando a inexistir disputas internas depois de formada a lista: todos trabalhariam para a eleição das propostas da legenda, deixando de haver necessidade de financiamento privado de campanhas: elas seriam exclusivamente financiadas por recursos públicos.

O PL 2679/2003 (aqui) , que trazia essas novidades, foi rejeitado pela Câmara dos Deputados em 2007. Já em 2003, participei de um debate sobre esse tema com Ronaldo Caiado (DEM/GO) promovido pela Comissão de Direito Político Eleitoral da OAB/SP (aqui), em que já manifestava o meu descontentamento com os rumos da reforma política, que solapava do eleitor o voto em seus candidatos preferenciais predispostos em listas abertas, tal como hoje é feito. Penso que a vitória da lista fechada seria a institucionalização do caciquismo político.

Agora, trata-se de projeto de lei enviado pelo Poder Executivo, cujo relator é João Paulo Cunha (PT/SP), que ressucitou a matéria e que, em razão dos soluços provocados por crises episódicas, voltou à ribalta dos noticiários, trazido pelos parlamentares ávidos de tirar das manchetes os sucessivos escândalos com passagens aéreas, mordomias, sinecuras, além de outros malfeitos imputados aos congressistas.

Uma das razões pelas quais pode a alguns apetecer a ideia de listas fechadas e financiamentos públicos de campanha seria a tese do fim da concorrência interna nos partidos, vencida quando da formação das listas, e o fim da corrupção em financiamento, uma vez que os recursos seriam públicos. Mas o que ninguém tem dito é que não existem sistemas eleitorais perfeitos e imunes à corrupção ou à existência de caixa dois. David Fleischer, em texto intitulado "Reforma política e financiamento das campanhas eleitorais" (aqui), após tecer loas ao conteúdo dessa proposta de reforma política, não deixa de sublinhar que mesmo na civilizada europa, que adota grandemente esse sistema, não foram banidas as práticas de doações ilegais e caixa dois (p.85):

Paralelamente, a Alemanha tem um sistema rigoroso de auditoria e controle interno e externo para monitorar os gastos do governo, para evitar licitações viciadas, “comissões” extorsivas e contribuições extralegais. Apesar desse rigor, de vez em quando algum ministro ou subministro é demitido por “irregularidades” financeiras/eleitorais. Em 1999, o ex-primeiro-ministro Helmut Kohl, da CDU (Christlich Demokratische Union Deutschlands/União Democrata Cristã da Alemanha), foi acusado de ter “escondido” contribuições tipo “caixa dois”, não reportadas por seu partido; a CDU foi multada, sendo o montante da pena pecuniária três vezes superior à soma não declarada.
No início de 1993, os jornais deram conta de casos de corrupção eleitoral em grande escala na Itália (envolvendo quase todos os partidos); caixinhas de campanha por parte do Partido Socialista Francês; e contribuições clandestinas ao Partido Socialista Obrero Español, escândalo que provocou a queda do gabinete do primeiro-ministro Felipe González e a antecipação das eleições parlamentares.
Há na proposta de listas fechadas o início do caminho para as eleições indiretas no Brasil. Começa pelos cargos do legislativo; logo alcançará os cargos do Poder Executivo, numa espécie latinoamericana de democracia sem povo. É uma tentativa solerte de introduzir medidas políticas de "menor extensão democrática", para usar uma infeliz construção do presidente do TSE, Min. Carlos Ayres Britto.

A Câmara dos Deputados e o Senado Federal estão se desmoralizando em praça pública a cada dia. Não param de surgir notícias que jaçam a função parlamentar, ao ponto de um senador da República não ter pejo de publicamente se perguntar se ainda haveria utilidade na existência do Congresso Nacional, flertando com um perigoso aniquilamento do parlamento. Essa perda de legitimidade empurra o Poder Legislativo para a sua reinvenção, ficando à mercê da sanha dos caciques, que encontraram o ambiente propício para ampliar os seus poderes. Usam a crise que criaram para amplificar os tentáculos: propõem mudanças para que as coisas, a rigor, fiquem onde e como estão.

Quem entende um pouquinho de direito eleitoral sabe muito bem o que almeja a reforma proposta: afastar os eleitores dos seus representantes (aqui), justamente para que seja autêntica as palavras do deputado Sérgio Moraes (PTB-RS), que afirmou de modo destemido que estava "se lixando para a opinião pública" (aqui). Parece, ao fim e ao cabo, que essa mesma a finalidade dessa reforma política.

Na Folha de S. Paulo deste domingo Elio Gaspari manifestou-se claramente contra o caciquismo à base da proposta de reforma política, por ele atribuída ao deputado Ibsen Pinheiro (PT/RS), que em nada difere daquela anteriormente rejeitada, inclusive no valor per capita para o financiamento público de campanha: R$ 7,00 por eleitor (leia aqui).

Comentários

Anônimo disse…
Dr. É um prazer imenso postar um comentário no seu blog. Tenho o seu livro "Instituições de Direito Eleitoral, 7ª ed.", de fato, uma obra valiosíssima.
Estou no último ano do curso de Direito, parente ex Min. Saulo Ramos (no qual instituiu grande inspiração para o estudo do Direito, pela sua história de vida). É certo que breve postarei comentários sobre as hipóteses de inelegibilidade (absolutas e relativas – discussão não linear entre os doutrinadores constitucionais e eleitorais) e condições de elegibilidade.
Aí vão umas perguntas: A ADPF 144, em sua inicial, foi consistente na tentativa de retirar o trânsito em julgado dos casos da lc?
Já que o sistema é democrático, porque coibir a moralidade no alcance das carreiras jurídicas (magistratura, MP, delegado,etc) e não na busca do pleito?
A discussão foi polêmica, não obstante, deixou a desejar frente ao STF. O devido processo legal, no meu singelo modo de ver, não é a justificativa base. Presunção de culpabilidade não deve ser confundida com hipóteses de inelegibilidade.
Tive acesso ao seu vídeo nesse momento no youtube, por isso posto esse comentário. Grande iniciativa. Aproveito a oportunidade para criar um espaço maior na web para discussão das matérias atinentes ao DE.
Forte abraço

Fernando

fernandoramos@terra.com.br

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