Prestação de contas e formalismo: o direito do candidato se manifestar sobre irregularidades apontadas

Algo que tem se observado nos processos de prestação de contas é o exagerado formalismo de alguns tribunais regionais, de um lado, somado ao tratamento processual equivocado dos recursos eleitorais utilizados para corrigir eventuais excessos dos juízes eleitorais, de outro lado. Sempre em desproveito dos direitos políticos dos candidatos, sobretudo agora com a inovação introduzida por resolução (inconstitucional) do TSE, que nega a concessão de certidão de quitação eleitoral àqueles que tenham as suas contas rejeitadas.

Em muitos casos, os juízes eleitorais têm decidido pela rejeição da prestação de contas em razão de temas que não foram objeto de análise dos assistentes periciais ou mesmo que sequer foram submetidos a explicações por parte dos candidatos. Assim, o juiz eleitoral decide sobre a prestação de contas sem que o candidato possa se manifestar sobre eventuais irregularidades que poderiam ser sanadas ou justificadas, em evidente cerceamento do direito de defesa.

A natureza do processo de prestação de contas é administrativa. O candidato, através do seu partido político ou dele próprio, oferece a prestação de contas dos recursos recebidos e dos gastos realizados, fazendo uso de um programa de informática específico determinado pelo TSE, juntando os documentos consoante a legislação eleitoral. A relação jurídica que se forma entre o candidato/partido e a Justiça Eleitoral é administrativa, em que será observado se as doações eleitorais e os gastos de campanha estão de acordo com as normas cogentes, sendo verificados, uns e outros, por serventuários da justiça ou auditores cedidos pelos tribunais de contas. Em casos de dúvidas, podem os auditores solicitarem justificativas aos candidatos ou a apresentação de documentos faltantes, abrindo um prazo para diligências. Se, posteriormente, ainda restarem dúvidas ou falhas, mesmo com as justificativas ou apresentação de prestação de contas retificadora, e houver emissão de parecer técnico contrário à aprovação das contas, deverá ser novamente dada oportunidade a que o candidato se manifeste, juntando novos documentos ou justificativas, na forma do art.37 da Res.-TSE nº 22.715/2008, que prescreve:
Art. 37. Emitido parecer técnico pela desaprovação das contas ou pela aprovação com ressalvas, o Juíza eleitoral abrirá vista dos autos ao candidato ou ao comitê financeiro, para manifestação em 72 horas, a contar da intimação.
Parágrafo único. Na hipótese do
caput, havendo a emissão de novo parecer técnico que conclua pela existência de irregularidades sobre as quais não se tenha dado oportunidade de manifestação ao candidato ou ao comitê financeiro, o Juíza eleitoral abrirá nova vista dos autos para manifestação em igual prazo.

Nada obstante o sentido preciso da norma jurídica, têm alguns tribunais regionais negado a ela vigência, desconsiderando a sua importância para o pleno exercício do direito de defesa, em respeito ao art.5º, incisos LIV e LV, da CF/88. Já observei em situações concretas duas formas de desobediência ao art.37 da Res.-TSE nº 22.715/2008 pelos tribunais regionais: (a) pela manutenção de decisões judiciais que rejeitam as contas prestadas sem conceder ao candidato a oportunidade de se manifestar e, mais grave ainda, sem permitir que sejam juntados em grau de recurso os documentos que poderiam ser juntados em caso de observância daquela norma; e (b) em grau de recurso, substituir a razão de decidir de primeiro grau, mantendo a desaprovação de contas por outros fundamentos, sem que o candidato tenha tido a oportunidade de se manifestar sobre eles nem no primeiro grau nem em grau de recurso.

Ora, sendo administrativo o processo de prestação de contas, e também sem angularização da relação processual (sem lide, portanto - sobre o conceito de processo administrativo e jurisdição contenciosa e graciosa, vide o meu livro Instituições de direito eleitoral, 8ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, capítulo 06), não há estabilização da relação processual: sempre que houver dúvidas ou razões que ensejariam a desaprovação das contas, deve o candidato ser chamado a se manifestar.

Esse é o sentido da norma do art.37, parágrafo único, da Res.-TSE nº 22,715/2008. Sempre que haja novo parecer técnico ou - e aqui o sentido mais abrangente da norma me parece claríssimo, cumprindo o programa constitucional - sempre que haja a percepção pelo magistrado de que há irregularidades sobre as quais ainda não foi dada a oportunidade do candidato se manifestar, antes de julgar deverá ele obrigatoriamente abrir nova vista dos autos para manifestação em 72 horas, mesmo em grau de recurso.

Alguns tribunais regionais, nada obstante, estão tratando o processo de prestação de contas como se fosse processos de natureza jurisdicional, aplicando princípios processuais e recursais absolutamente inaplicáveis, gerando para os candidatos severas limitações em sua defesa, na hipótese de questionamentos à higidez das contas prestadas.

A consequência prática disto tem sido um número enorme de rejeição de contas por questões que poderiam ser superadas, mutilando o direito político de um sem número de candidatos eleitos ou não, que ficarão fora de uma futura disputa eleitoral, acaso prevaleça aquela norma inconstitucional do TSE, que criou nova hipótese de inelegibilidade cominada potenciada.

É necessário que os tribunais regionais urgentemente reflitam sobre esse tema, bem como sobre ele haja abertura do TSE, para evitar solapar da democracia a participação legítima de brasileiros prejudicados por um formalismo excessivo e equivocado.

Comentários

Unknown disse…
Professor Adriano.
Quanto à inconstitucionalidade da Resolução 22.715, que acresceu uma modalidade de suspensão de direito político, entendo também que houve extrapolação por parte do TSE, que impede a quitação eleitoral do candidato que teve contas rejeitadas ou não apresentadas, sendo inconstitucional, portando, a norma.
Quanto à análise das contas prestadas, o problema é que a resolução 22.715 é muito rigorosa e estabelece várias causas objetivas de desaprovação. Ora, sendo o procedimento administrativo, sem dúvida, a atividade do cartório seria basicamente vinculada à Resolução, não havendo muita margem para aprovação das contas com vícios não sanados e com as tais causas objetivas de desaprovação, como gastos ou arrecadação feitos entes da obtenção dos recibos e utilização de recurso financeiro sem trânsito pela conta bancária. Assim, o parecer técnico que opina pela desaprovação e o juiz que segue esse parecer não estariam cometendo abusos, mas tão só obedecento à orientação do TSE, revelada pela edição da Resolução 22.715. Nessa atividade administrativa não haveria uma certa redução do poder do juiz, que não estaria, por exemplo, autorizado a aplicar o princípio da insignificância para aprovar contas que tiveram recursos utilizados sem trânsito pela conta bancária ou que tiveram gastos antes da obtenção dos recibos eleitorais, ou ainda que tiveram erros formais, mas que não foram corrigidos?

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