Como faz falta uma teoria da inelegibilidade no debate: ainda a vida pregressa

Muitos dos debates entre os juristas, dizia Genaro Carrió, decorre de problemas de linguagem. Outros tantos, decorrem de boas ou más classificações jurídicas. Não existe, ensinava o jurista argentino, classificação correta ou incorreta; elas são úteis ou inúteis.

A teoria da inelegibilidade tem um cacho de classificações inúteis, como aquela entre inelegibilidade absoluta e relativa, por exemplo. Não serve para nada, senão para dizer o óbvio e, ainda assim, com erros graves. Na verdade não existem inelegibilidades absolutas ou relativas: todas, para um determinado pleito, são absolutas, aplicando-se no modo tudo ou nada: ou há ou não há inelegibilidade para aquele cargo. Dir-se-á que as absolutas são para todos os cargos; as relativas, para alguns. Erro. Gradação, se houver, está nos pressupostos de elegibilidade, nunca na inelegibilidade. Mas esse tema refoge ao presente post. Quem quiser debater sobre isso, convido para a Comunidade de Eleitoralistas e proponho que abra um fórum de discussão.

Volto ao tema.

Já disse no videocast 2, publicado na Comunidade de Eleitoralistas e neste blog, que a vida pregressa não é condição de elegibilidade, como confusamente - com todo o carinho e respeito ao Min. Ayres Britto - buscou-se demonstrar na sessão de ontem do STF. Ao tentar apartar condições de elegibilidade, inelegibilidade e suspensão dos direitos políticos, esqueceu-se que o pleno exercício dos direitos políticos é condição de elegibilidade fixada pela Constituição Federal (art.14, § 3º, inciso II), necessitando, para que não seja preenchida, o trânsito em julgada de decisão condenatória, consoante o art.15 da CF/88.

O art.14, § 9º, da CF/88, ao exigir lei complementar para a criação de hipóteses de inelegibilidade e seu prazo para proteger a moralidade para o exercício do mandato e a probidade administrativa, considerando-se a vida pregressa, nada mais fez do que criar uma garantia de que as hipóteses de inelegibilidade apenas poderiam ser criadas por meio de lei de quórum qualificado. E isso o Supremo Tribunal Federal, por sua ampla maioria, disse isso em cores fortíssimas.

Agora, diga-se mais. Não se pode afirmar, como alguns eleitoralistas de escol vêm fazendo, que a vida pregressa pode ser criada como condição de elegibilidade, porque não há necessidade de demonstração de culpa para essa espécie de inelegibilidade. E como exemplo de inelegibilidade sem culpa, cita-se a incompatibilidade por parentesco. Como faz falta uma teoria das inelegibilidades consistente!

Ora, a desincompatbilização é condição de elegibilidade atípica, conforme demonstramos em nossas Instituições de direito eleitoral. A incompatibilidade por parentesco é, de conseguinte, inelegibilidade inata, como a todos os que não preencheram as condições de elegibilidade e não tiveram o registro de candidatura deferido. Não há culpa porque o fato de ocupar cargo público ou ter grau de parentesco com quem ocupa não é fato ilícito, razão pela qual não gera sanção alguma. Culpa é elemento volitivo do suporte fáctico do ato ilícito lato sensu. Dolo, também. Sem fato ilícito, como falar em culpa ou quejandos? Fernando Neves, ilustre advogado e ex-Min. do TSE, caiu nesse equívoco, segundo penso e com todas as vênias devidas.


Ora, a inelegibilidade em razão da vida pregressa - e isso mostrou de modo eloqüente o voto do Min. Peluso - é uma sanção sem prévia sanção. Denominar algum candidato de "ficha suja" apenas porque responde a um processo é inverter o princípio da não-culpabilidade, é já embalá-lo em jaça terrível, inculpando-o por antecipação. Pior nos tempos de hoje, quando há uma compulsão crescente para acionar gestores públicos, com ou sem razão.

Quem não se lembra do caso Eduardo Jorge, então assessor de Fernando Henrique Cardoso, tantas vezes acionado pelo Ministério Público e tantas vezes inocentado? Quem não se lembra das acusações contra filiados do PT de estarem por trás de uma suposta orquestração no assassínio do então Prefeito de Santo André? A avalanche de denúncias sem provas não é afeta a um ou outro grupo político e ninguém pode ser expurgado pelo conjunto da obra, como querem alguns, ou seja, pelo volume de processos que tenha contra si propostos.

Esse moralismo eleitoral é a prova no anacronismo a que chegamos, em que instituições querem ver os cidadãos tutelados, como se não soubessem eles mesmos escolher os seus representantes. Pior quando uma das instituições é a AMB, como enfaticamente criticaram os Mins. Peluso e Marco Aurélio.

Tenho de há muito dito - e continuo incansável a dizer: sem o aprofundamento teórico do direito eleitoral, fica ele um campo de ninguém, de opiniões sem fundamento (e aqui não é o caso, por evidente, da opinião abalizada de um advogado da envergadura de Fernando Neves, anteriormente referido). Precisamos sair dos posicionamentos midiáticos de algumas instituições e estudar um pouco mais. Precisamos, também, crer mais na democracia e na sabedoria do nosso povo.

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