Vida pregressa e inelegibilidade: hora de colocar os pingos nos is.
Atualizada em 31/07/2010, às 16h46
O pensar jurídico dogmático é a racionalização dos conceitos partindo do ordenamento jurídico. Na construção de proposições jurídicas descritivas, toma-se a linguagem das normas jurídicas como linguagem objeto, é dizer, linguagem de primeiro grau. A linguagem da ciência do direito é sobrelinguagem. Aquela, das normas jurídicas, prescritiva; essa, a da ciência do direito, descritiva.
As decisões judiciais prescrevem. São normas individuais e concretas ou normas gerais e concretas. A natureza prescritiva das decisões judiciais é de segundo grau; aplicam as normas gerais e abstratas para declarar, constituir, condenar, executar e/ou mandar. Esgotam-se nesses conteúdos/efeitos a operatividade deôntica das sentenças. As decisões judiciais estão já no momento de concreção do direito, em que começa o fusionamento entre ser e dever-ser, entre pensamento e ato, entre linguagem e vida.
Tenho feito críticas acerbas à proposição descritiva segundo a qual "a inelegibilidade não é sanção; é condição". É proposição, insista-se, no plano da sobrelinguagem vertendo sobre a linguagem objeto, aquela do ordenamento jurídico. Por que não seria sanção a inelegibilidade? Antes de buscar as respostas, convém mais uma vez contextualizar a questão, surgida no âmbito das discussões sobre a constitucionalidade do projeto de lei que se converteu na LC 135.
Quando algumas vozes começaram a questionar a amplitude da LC 135/2010, a retroatividade das suas normas, buscaram opor como resposta que não haveria retroatividade, porque o momento de aferir as condições de elegibilidade e as inelegibilidades seria o registro de candidatura. Ora, como a LC 135 foi publicada antes mesmo das convenções, poderia ser imediatamente aplicada, devendo os candidatos demonstrarem que cumpriam aquilo que passaram agora a chamar de condição de elegibilidade: uma vida pregressa compatível. Assim, no momento do registro, o juiz eleitoral deveria olhar se a vida pregressa era adequada, observando a existência de alguma decisão colegiada que aplicasse a inelegibilidade, agora ampliada - notem bem! - pela nova LC 135 para 8 anos. No raciocínio desenvolvido, a condição de elegibilidade seria a vida pregressa, analisada a partir da existência ou não da inelegibilidade aplicada.
Esse ponto é fundamental. Peço atenção a ele, para destrinchar os labirintos desse raciocínio juridicamente enviesado. Na proposição "a inelegibilidade é condição" é uma elipse; nela esconde-se o sentido completo da asserção entabulada pelos defensores fundamentalistas da LC 135/2010, que é, o sentido, o seguinte: "a vida pregressa é condição, aferida pela inexistência de inelegibilidade". A inelegibilidade mesma não poderia ser condição de nada, porque condição é pressuposto. E não se pode afirmar que o pressuposto da concessão do registro de candidatura seja a inelegibilidade. Seria uma contradição em termos. Na verdade, é o inverso que se daria nesse tese: a existência de inelegibilidade é a inexistência de vida pregressa adequada; a inexistência de inelegibilidade é a existência de vida pregressa apta.
Postas as coisas claramente nestes termos, fica evidente que a análise da vida pregressa não é outra coisa, hoje, que a existência ou não de inelegibilidade. Noutras falas, hoje, o conceito de vida pregressa, para os fins do art.14, § 5º, da CF/88 e da LC 135/2010, restringe-se à existência ou não de inelegibilidade. Aquelas discussões acaloradas ao tempo da ADPF 144/DF morreram todas. Lá, a vida pregressa era conceito largo, que independia de decisão judicial ou aplicação de sanção. Bastava existir uma nódoa na vida do candidato, como estar indiciado em investigação policial, ou estar denunciado em ação penal, ou estar respondendo à ação de improbidade administrativa, para já estar sem o requisito da vida pregressa. Agora, não. Tudo voltou a ser como antes: a vida pregressa, com a LC 135, como era já ao tempo da LC 64/90, deve ser aferida através da existência ou não de inelegibilidade.
Começou, então, um problema sério para os defensores fundamentalistas da LC 135: como sustentar a sua aplicação de imediato a casos passados e já consolidados, diante de uma demanda midiática provocada pelo clamor de inspiração fascista de punir a todos os políticos? Só havia um caminho: disseminar a ideia justificadora de que a inelegibilidade não seria uma sanção (nem entro aqui na afronta escancarada ao art.16 da CF/88).
Para a LC 135, o conceito de vida pregressa está umbilicalmente ligado ao de inelegibilidade. Sendo assim, passou-se a afirmar que haveria na inelegibilidade a aplicação de um juízo de moralidade, distando-a da natureza sancionatória, enquanto na sanção penal haveria um juízo de culpabilidade. Sobre o despautério da distinção, escrevi neste blogue (aqui e aqui).
Márlon Jacinto Reis, membro do MCCE, passou a ser o primeiro a escrever sustentando que "As inelegibilidades não possuem, como se percebe, nenhuma finalidade punitiva, voltando-se a prevenir o ingresso no mandato de quem quer que possa vir a dele fazer mal uso. É esse o principal propósito do estabelecimento das inelegibilidades: a proteção da Administração Pública e do processo eleitoral. Assim, diferentemente do que ocorre no âmbito penal, o conteúdo das inelegibilidades não é repressivo, mas preventivo" (Inelegibilidade e vida pregressa. Questões constitucionais, Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2086, 18 mar. 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2010).
Há uma clara subversão do conceito de inelegibilidade, visando legitimar a aplicação retroativa da LC 135. De repente, não mais que de repente, a inelegibilidade passa a ter natureza cautelar! Aqui, os fins, tomados por bons, justificam os meios, que é a adulteração do sentido positivado do conceito de inelegibilidade. Mesmo que a estratégia argumentativa não encontre amparo nem mesmo na própria LC 135, que chama de sanção a inelegibilidade em seu art.22, XIV.
Essas teses são construídas lateralmente ao direito positivo. Porque elas, na verdade, não respeitam o direito posto; ao contrário, querem transformá-lo naquilo que antidemocraticamente desejam, sem o escrutínio do Parlamento. Se possível, contrariamente ao Parlamento. É uma espécie de direito livre, achado na rua, consoante no-lo demonstra a petição inicial da ADPF 144/DF.
As sanções são efeitos de fatos jurídicos ilícitos, pouco importa sejam eles de natureza criminal ou cível. Hans Kelsen lembra que "As sanções são estabelecidas pela ordem jurídica com o fim de ocasionar certa conduta humana que o legislador considere desejável. As sanções do Direito têm caráter de atos coercitivos (...). A diferença entre Direito civil e Direito criminal é uma diferença no caráter de suas respectivas sanções. Se considerarmos, porém, apenas a natureza externa das sanções, não poderemos encontrar quaisquer características distintivas." (Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.53). Essas lições podem ser resumidas em uma exposição de Marcos Bernardes de Mello, que afirmará em sua obra de teoria geral do direito, que resumiu o pensamento de Pontes de Miranda, o seguinte: "Para configurar a contrariedade a direito caracterizadora da ilicitude, não importa a que ramo do direito pertença a norma jurídica violada: não há diferença ontológica entre ilícito civil, penal, administrativo ou de qualquer outra espécie, em razão da contrariedade a direito" (Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16ª ed., São Paulo: Saraiva, p.228).
Em um livro pouco conhecido no Brasil, Noberto Bobbio trata daquelas sanções a que ele denomina "premiais", que aqui não nos interessam. Mostra o saudoso filósofo e jurista peninsular que a função da sanção negativa (é dizer, a sanção como pena) "é a de proteger determinados interesses mediante a repressão dos atos desviantes". Seguindo em sua exposição, Bobbio afirma: "Não há dúvidas de que a técnica das sanções negativas é a mais adequada para desenvolver esta função, a qual é, ao mesmo tempo, protetora em relação aos atos conformes e repressiva em relação aos atos desviantes" (Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito, trad. Daniela Beccaccia Versiani, Barueri, SP: Manole, 2007, p.24, como itálicos nossos).
Noberto Bobbio aponta essa dupla face das sanções: de um lado, visam a proteger a licitude, o bem conforme ao Direito; de outra banda, reprimir os atos contrários a Direito, que violem os interesses caros ao ordenamento jurídico. A sanção é, sempre, a um só tempo protetora e repressora. Essa a razão pela qual a alegada cautelaridade ou preventividade da inelegibilidade, apontada pelos defensores fundamentalistas da LC 135, é comum a todas as sanções: elas são sempre, insista-se!, protetoras de valores ou interesses jurídicos. Para os que, nada obstante, desafiem o ordenamento, entra em pauta a coação, em que a sanção desempenha um papel repressivo. Ou seja, a inelegibilidade cominada é sanção negativa aplicada ao fato jurídico ilícito eleitoral, com a função abstrata de proteger valores e interesses, além da função repressora concreta de punir o infrator.
Como identificamos se um efeito jurídico tem natureza de sanção? Basta olhar para o fato jurídico que lhe dá origem. É sempre o fato jurídico que diz dos efeitos. Entre as normas e os efeitos jurídicos, há sempre a figura intercalar do fato jurídico. Se ele é ilícito, o seu efeito será sempre uma sanção.
Aqui há outro profundo pecado de teoria geral do direito na afirmação de que a inelegibilidade não seria uma sanção, mas uma condição. E o pecado é justamente desconsiderar o fato jurídico que lhe deu origem. E olhar o fato jurídico é justamente examinar os fatos hipotizados como tal na LC 135/2010. Por exemplo: abuso de poder econômico ou político é o fato jurídico que faz nascer a inelegibilidade de 8 anos a contar da eleição, consoante a alínea "d" do inciso I do art.1º da LC 64/90. A proposição da norma de direito material tema sua compostura bem definida logicamente: suporte fáctico --> preceito. Há a previsão do fato jurídico ilícito eleitoral do abuso de poder econômico e/ou político, atribuindo-lhe como efeito a sanção de inelegibilidade por 8 anos.
Mas essa norma da alínea "d" possui também normas processuais. Esse abuso de poder, que é fato ilícito eleitoral, há de ser declarado em decisão judicial, ficando os efeitos da decretação da inelegibilidade cominada por 8 anos condicionados à decisão de órgão colegiado. A alínea "d" fixa a imediata efetividade do efeito constitutivo negativo (inelegibilidade) da decisão do órgão colegiado, independentemente de trânsito em julgado. Esse ponto é também fundamental: a decisão judicial que decreta a inelegibilidade contra o ato ilícito de abuso de poder o faz com esteio nas normas jurídicas em vigor.
É justamente por isso que a LC 135/2010 não pode retroagir para ampliar a inelegibilidade de fatos ilícitos ocorridos ao tempo da LC 64/90. Porque o efeito da inelegibilidade de 3 anos é previsto aos fatos jurídicos ilícitos ocorridos na vigência da LC 64/90, como resultado da sua decretação por decisão judicial transitada em julgado. Fere o princípio da segurança jurídica, o princípio da não-surpresa e, como maior razão, ao princípio da dignidade da pessoal humana a aplicação ou majoração de sanções a fatos pretéritos.
Quando um juiz, diante de um pedido de registro de candidatura, analisa a existência ou não de inelegibilidade do candidato, deve fazê-lo de acordo com a lei do tempo do fato havido hoje por ilícito. Temos duas situações: (a) O fato era ilícito antes da LC 135? Não. Não se pode aplicá-la. (b) O fato era ilícito antes da LC 135? Era. Então devemos observar quais os efeitos jurídicos atribuídos pela legislação do tempo do fato jurídico já havido como ilícito. A inelegibilidade era de 3 anos, a contar da eleição em que o ilícito ocorreu. Bem, houve extinção daquela sanção. O candidato não mais está submetido àquela inelegibilidade.
É dizer, a LC 135 não pode se aplicar a fatos jurídicos ilícitos anteriores à sua vigência, alterando os seus efeitos jurídicos, muitas vezes objeto de decisões judiciais já transitadas em julgado.
Espero ter deixado claro que a vida pregressa do candidato, hoje, chama-se inelegibilidade, como já ocorria na LC 64/90. E a inelegibilidade cominada a fatos jurídicos ilícitos é sempre uma sanção, não podendo retroagir para alcançar fatos jurídicos passados, anteriores à vigência da lei que a criou ou a ampliou.
Uma última observação: ao tempo da ADPF 144/DF, os seus defensores diziam que a vida pregressa era condição de elegibilidade; não era inelegibilidade. Hoje, ao tempo da LC 135/2010, os mesmos defensores dizem que a vida pregressa decorre da inelegibilidade; a inelegibilidade é que não seria sanção, mas condição. Disso tudo fica uma lição: há nessas proposições pouco de raciocínio jurídico e muito, ou quase tudo, de ideologia e política.
Aqui, por opção de vida, faço doutrina. A política, aos políticos.
Comentários
Qual a sua análise sobre a nova redação do artigo 1, I, "g" da Lei das Inelegibilidades? Vi um caso em que o candidato teve uma condenação inicial em que lhe foi aplicada "nota de improbidade" e, em sede de recurso, tal nota foi excluída.
Mesmo com essa decisão da Corte de Contas, o TRE inclina-se pelo indeferimento do registro.
Qual o vosso entendimento?
Grato,
Júnior Bonfim
O que está acontecendo com o conceito inelegibilidade, nesta última quadra do praxismo no direito eleitoral, é prova de que um afazer que exige técnica e ciência - como é o Direito e sua práxis -, quando feito sem ciência e com má técnica, pode levar a tristes deturpações da "realidade" téorica e conceitual, para se deturpar a sua prática e o agir concreto dos homens.
Aqui falo da realidade da Ciência juseleitoral, que sofre na mão de muitos escritores de "livros de direito eleitoral" que não tem adequada formação acadêmica e na mão de magistrados que além de não terem adquada formação em direito eleitoral e direito constitucional se deixam levar pelo preconceito ou apenas se submetem - acriticamente - a decisões precipitadas e irrefletidas de um Tribunal de Cúpula (concretamente, o TSE, em suas recentes decisões sobre o tema).
Mas quero acrescentar um singelo ponto a idéia de caracterizar a inelegibilidade como sanção.
Sanções representam restrições as liberdades.
Liberdades ambulatórias são restringidas com as sanções penais, criminais, que impõe detenção ou reclusão.
Liberdade econômica é restringida com pena pecuniária ou restrição de atividade econômica, etc.
E as liberdades políticas, ou melhor, a restrição ao direito fundamental de ser votado, é sancionado como? Com a inelegibilidade.
Ao fato jurídico que autorize a restrição à liberdade de ser votado, chama-mo-lo inelegibilidade.
Esse fato pode decorrer de situação para o qual o candidato não tenha concorrido com sua vontade e comportamento, como no caso dos vínculos de parentesco com mandatários do executivo.
Ou pode decorrer de fatos que tenham sido cometido antes do período eleitoral, de propaganda eleitoral, do processo eleitoral, ou ocorram durante este período ou em tempo endereçado a preparar esse período.
Os fatos anteriores a esse período eleitoral, pela Lei ficha limpa, podem ser discutidos em processos criminais, de improbidade, processos judiciais, ou processos administrativos disciplinares, parlamentares, ético-profissionais e de contas públicas.
Os fatos ocorridos dentro do período eleitoral, serão debatidos em açãos de investigação judicial eleitoral, representação eleitoral, ação de impugnação de mandato eletivo e recurso contra expedição de diploma.
Todos esses fatos debatidos judicial ou administrativamente, em processos que que reconheçam condutas e vontades como incursas em certas hipóteses legais, podem gerar a inelegibilidade como sanção.
Ou seja, podem reconhecer a existência da fatos ilícitos, cuja ocorrência ensejará uma restrição na liberdade de ser votado, ou seja, insejará a sanção de inelegibilidade.
Defender cega e incultamente a tese de que a inelegibilidade é condição e não sanção, é tentar esconder (com má fé) ou não conseguir enchergar (por ignorância) atrocidades da altura da defesa de (i) penas sem processos, (ii) penas com leis retroativas e (iii) mesmo penas sem lei!
O Direito Eleitoral pode assim ser compreendido com respeito aos princípios constitucionais estruturantes do Estado de Direito, Democracia e República?
Direitos Políticos Fundamentais como soberania popular, voto universal e liberdade de participar da coisa pública por mandato popular estão sendo justiçados?