Eleições 2008 - Prestação de contas

1. Prestação de contas e assunção de dívidas.

A Lei nº 11.300/2006 buscou ser severa quanto à prestação de contas dos candidatos e comitês financeiros, estipulando maior rigor inclusive quanto aos prazos estipulados para (a) o recebimento de doações eleitorais; (b) os prazos fatais para a prestação de contas; e (c) a oportunidade para recebimento de doações exclusivas para a quitação de débitos eleitoarais após o dia da eleição.

Na prestação de contas das eleições presidenciais de 2006, o Comitê Financeiro do candidato à reeleição do Sr. Luís Inácio Lula da Silva apresentou déficit em seu balanço, demonstrando ter havido gastos de campanha não cobertos com doações recebidas pelo candidato. A quatia de R$ 10.303.372,70 era dívida de campanha. Nem mesmo depois do dia da eleição houve recursos suficientes arrecadados para fazer face às dívidas assumidas. O Comitê Financeiro lançou mão, então, de um artifício para obviar a legislação vigente: o Partido dos Trabalhadores fez a assunção liberatória das dívidas eleitorais do Comitê Financeiro, realizando através do instrumento de novação com os fornecedores e credores da campanha presidencial, que anuíram com o procedimento. As dívidas eleitorais vencidas e não-pagas, em um passe de mágica, passaram a ser dívidas partidárias, dando o PT quitação ao Comitê Financeiro. O procedimento apoiava-se na Resolução nº 21.281, de 31.10.2002 (rel. Min. Fernando Neves, DJU de 14.11.2002), que em julgamento de prestação de contas daquela época autorizou "o partido político assumir a responsabilidade por esses pagamentos, desde que destaque, por ocasião da prestação de contas anuais, a origem dos recursos utilizados para quitar essas obrigações". Todavia, àquela época não havia a exigência, decorrente da Lei nº 11.300/2006, de que até a data da prestação de contas todos os gastos eleitorais estivessem quitados, podendo o candidato valer-se de doações posteriores à eleição apenas para esse fim.

Ou seja: com a autorização da sua assunção pelo partido, a dívida eleitoral teria deixado de existir, fechando as contas da campanha, nada obstante o PT ficasse endividado, deixando de fazer a prestação de contas posteriormente, com quitação das despesas. Uma clara fraude à lei, sem embargo da sua aceitação pelo TSE:

RESOLUÇÃO 22500/DF, PSESS 13/12/2006.
Relator(a): JOSÉ GERARDO GROSSI
EMENTA: Eleições 2006. Prestação de Contas. Campanha. Comitê do Candidato. Aprovação. Fonte vedada. Erro material. Dívida de campanha. Novação (art. 360 do Código Civil). Assunção de dívida. Possibilidade. Precedente.
1. Sociedade não concessionária ou permissionária de serviço público, que participa de capital de outra sociedade, legalmente constituída e que seja concessionária ou permissionária de serviço público, não está abrangida, só por isto, pela vedação constante do art. 24, III, da Lei nº 9.504/97.
2. Verificado, em parecer técnico, erro material, de grande monta, na relação de notas fiscais emitidas por empresas que forneceram bens a comitê de candidato em campanha eleitoral, não se pode afirmar ter havido falta grave na prestação de contas.
3. É permitida a novação, com assunção liberatória de dívidas de campanha, por partido político, desde que a documentação comprobatória de tal dívida seja consistente.
4. Feita a assunção liberatória de dívida, o partido político, ao prestar suas contas anuais, deverá comprovar a origem dos recursos utilizados no pagamento da dívida, recursos que estarão sujeitos às mesmas restrições impostas aos recursos de campanha eleitoral.
5. Contas aprovadas.
Inteiro teor: clique aqui.

A Resolução nº22.715. de 28 de fevereiro de 2008, ao editar a Instrução nº 118 para as eleições de 2008, resolveu colocar escoras na porta arrombada, prescrevendo o seguinte:

Art.21. (...)
§ 1º. Excepcionalmente, será permitida a arrecadação de recursos após o prazo fixado no caput, exclusivamente para quitação de despesas já contraída e não pagas até aquela data, as quais deverão estar integralmente quitadas até a data da entrega da prestação de contas à Justiça Eleitoral, vedada a assunção de dívida por terceiros, inclusive por partido político.

O § 1º do art.21 deixa explícito o que já era evidente antes da sua edição: a impossibilidade de o partido político transformar, em um passe de mágica, gastos eleitorais - com seu regime próprio - em gastos partidários, tornando flácido e inútil o sistema de controle que havia sido criado pela Lei nº 11.300/2006. Aliás, basta observar que posteriormente àquele julgamento, o TSE teve a oportunidade de apreciar a prestação de contas do PT relativa ao ano de 2006 e a dívida assumida ainda não havia sido paga em sua integralidade.

É certo que naquele julgamento das contas do comitê financeiro da campanha presidencial houve quem sustentasse, a exemplo do Ministro Cezar Peluso, que como haveria "possibilidade teórica de sobra", poderia haver "possibilidade teórica de débito, de passivo a descoberto". Hoje, com a edição da Instrução nº 118/2008, aboliu-se a possibilidade de assunção de dívidas, firmando-se com mais rigor a exigência de que as dívidas eleitorais devem estar quitadas integralmente até a data da entrega da prestação de contas. Esse ponto é relevante. Não podem mais os candidatos realizarem despesas eleitorais sem o mínimo de previsão de receita, para depois da eleição ver como é que fica. Hoje, para a aprovação das contas, necessário que haja o "encaixe: receitas e gastos", na expressão utilizada pelo Min. Marco Aurélio. Quid juris se não houver o encaixe entre receitas e gastos e residualmente houver passivo a descoberto? Penso que não será caso de rejeição automática das contas, devendo ser analisada a intensidade do descompasso entre receita e despesa, de previsibilidade mal-sucedida de arrecadação, para se observar o abuso dos gastos realizados. Não havendo abuso, é o caso - segundo penso, na linha do pensamento de Peluso (se se admitem sobras de campanha pode-se admitir, em tese, passivo a descoberto) - de se aprovarem as contas com ressalvas.

De toda sorte, essa norma é o reconhecimento oficial pelo TSE de que a assunção de dívidas eleitorais por terceiros é uma forma evidente de descumprimento da legislação eleitoral, simulando uma solução contábil com frágil roupagem jurídica. Agora, após que o boi passou, impede-se que a boiada venha atrás...


2. Prestação de contas e inelegibilidade: a certidão de quitação eleitoral.

A prestação de contas do candidato e do Comitê Financeiro é julgada pela Justiça Eleitoral, sendo afeta a competência para o julgamento originário ao órgão judiciário responsável para a concessão do registro de candidatura: nas eleições municipais, o Juiz Eleitoral; nas eleições de governador, senador, deputado federal e deputado estadual, o Tribunal Regional Eleitoral; nas eleições presidenciais, o Tribunal Superior Eleitoral.

Há, segundo a Instrução nº 118/08, quatro decisões possíveis sobre as contas de campanha (art.40): a) pela aprovação, quando estiverem regulares; b) pela aprovação com ressalvas, quando verificadas falhas que lhes comprometam a regularidade; c) pela desaprovação, quando verificadas falhas que lhes comprometam a regularidade; e d) pela não-prestação, quando o candidato deixar de apresentar as contas em 72 horas após notificado de não ter cumprido o prazo de 4 de novembro, em caso de eleições de um turno só, ou 25 de novembro, em caso de segundo turno. Não são consideradas recebidas as contas que apresentarem divergência entre o número de controle constante das peças impressas e o constante do disquete; incosnsitência de dados, falhas de leitura do disquete, ausência do número de controle nas peças impressas, qualquer outra falha que impeça a recepção eletrônica das contas na base de dados da Justiça Eleitoral (art.34, § 1º). As assessorias contábeis dos candidatos devem ter o maior zelo na prestação de contas para evitar a sanção decorrente da não-prestação de contas por vício de forma dos meios empregados.

Superou-se a tese de que não mais haveria aprovação com ressalvas; ou se aprovaria ou se reprovaria. Muito bem. A Instrução nº 118/08 admite dois graus de falhas na prestação de contas: as que comprometem a regularidade da prestação de contas e as que não têm o mesmo efeito. As primeiras, hão de comprometer a integridade da prestação de contas, sendo mais do que meros erros materiais ou diferença de pequena monta, como a ausência de alguma nota fiscal do gasto com alguns litros de combustível, por exemplo. Erros formais e materiais corrigidos não implicam desaprovação das contas (art.39); erros formais e materiais não corrigidos, que possam ser considerados falhas que não comprometem a regularidade da prestação, também não ensejam a desaprovação, ainda que suscitem ressalvas.

Temos que atentar para a norma do § 1º do art.41, que é relevantíssima e que reproduz o § 4º do art.22 da Lei nº 9.504/97, com a redação introduzida pela Lei nº 11.300/2006: "Desaprovadas as contas, o juízo eleitoral remeterá cópia de todo o processo ao Ministério Público Eleitoral para os fins previstos no art.22 da Lei Complementar nº 64/90". Ou seja, a desaprovação das contas não enseja, por si, a inelegibilidade cominada do candidato; necessário que ela configure abuso de poder econômico, com potencialidade para desequilibrar o resultado do pleito. Dois pressupostos, portanto, para ensejar a inelegibilidade do candidato com as contas desaprovadas: a) configuração de abuso de poder econômico, é dizer, a demonstração de excesso de gasto eleitoral em desacordo com a legislação; e b) a potencialidade para desequilibrar o pleito, ou seja, a comprovação de que aquele abuso cometido com o excesso de gastos ou a realização de gastos não autorizados por lei geraria desequilíbrio na disputa em favor do candidato, eleito ou não.

A novidade surpreendente, nada obstante, foi introduzida pelo § 3º do art.41 da Instrução nº 118/2008:

Art.41. (...)
§ 3º. Sem prejuízo do disposto no § 1º, a decisão que desaprovar as contas de candidato implicará o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral durante o curso do mandato ao qual concorreu. (grifei)

Há muito alerto para as conseqüências práticas da teoria clássica da inelegibilidade, que mistura de modo raso conceitos como inelegibilidade, elegibilidade, incompatibilidade e mais recentemente cassação de registro de candidatura. A mixórdia conceptual grassa, possibilitando as mais bizarras construções jurisprudenciais, que dobram os institutos jurídicos até a sua desfiguração. Assim, consoante demonstrado ad nauseam em minhas "Instituições do direito eleitoral", 6ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, esp. cap.05, não se pode, a pretexto de salvar a constitucionalidade do art.41-A da Lei nº 9.504/97, diferençar a inelegibilidade da cassação do registro de candidatura, como se fossem coisas distintas, para excluir da incidência do § 9º do art.14 da CF/88 a criação desta sanção por lei complementar. Quando os conceitos são vazios, qualquer conteúdo cabe nos signos...

Pois bem. Agora, por meio de resolução, o Tribunal Superior Eleitoral cria uma nova inelegibilidade cominada potenciada, com duração de quatro anos ("durante o curso do mandato", prescreve a norma sob comento), decorrente da desaprovação das contas e independentemente da (a) prática de abuso de poder econômico com (b) potencialidade para desequilibrar o pleito. Noutras falas, basta que haja desaprovação das contas para imediatamente dimanar o efeito da inelegibilidade por quatro anos, configurada no impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral.

Para que se tenha a exata noção da gravidade da norma veiculada, cito decisões sobre elegibilidade e quitação eleitoral:


RESPE 26399/RO, PSESS, Data 20/09/2006
Relator(a) : JOSÉ AUGUSTO DELGADO
EMENTA: RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2006. REGISTRO DE CANDIDATURA. QUITAÇÃO ELEITORAL. AUSÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA. MULTA ELEITORAL. ARTS. 33, § 3º, E 45, III, § 3º, DA LEI Nº 9.504/97.
1. Está em débito com a Justiça Eleitoral o candidato que não procede ao pagamento de multa pecuniária decorrente de representação eleitoral transitada em julgado.
2. O art. 11, VI, § 1º, da Lei nº 9.504/97 estabelece que, ao requerer o registro de candidatura, os partidos ou coligações apresentarão certidão de quitação eleitoral do candidato. A ausência desse requisito é causa de indeferimento de registro.
3. A multa que impede a emissão de certidão de quitação eleitoral é exatamente aquela derivada dos arts. 33, § 3º, e 45, III, § 3º, da Lei nº 9.504/97, como se vê da Res.-TSE nº 21.823/2005.
4. Recurso especial eleitoral não provido. (grifos nossos).

A Lei nº 11.300/2006, ao introduzir a previsão de encaminhamento dos autos ao Ministério Público, em caso de desaprovação das contas, para os fins do art.22 da LC 64/90, já havia estabelecido a possibilidade da prestação de contas rejeitada gerar a inelegibilidade, desde que demonstrada a ocorrência de (a) abuso de poder econômico e (b) potencialidade para interferir no resultado do pleito. O § 3º do art.41 da Instrução nº 118/2008 torna inútil aquela nova norma do § 4º do art.22 da Lei nº 9.504/97, porque simplesmente anexa automaticamente à decisão de desprovação das contas a sanção de inelegibilidade cominada potenciada por quatro anos, superior inclusive àquela que se poderia obter através da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE).

Observe-se que o TSE põe a exigência de quitação eleitoral como condição de elegibilidade, ou seja, a sua ausência implicaria o indeferimento do registro de candidatura, que é o fato jurídico que faz nascer a elegibilidade. Confusão conceptual típica da teoria clássica da inelegibilidade, apta a justificar os abusos hermenêuticos que a jurisprudência eleitoral não cansa de cometer. Condição de elegibilidade é pressuposto à obtenção do registro de candidatura, predisposta pela Constituição Federal ou por norma infraconstitucional. Inelegibilidade é a ausência de elegibilidade, ou porque originariamente não se preencheram os pressupostos para a sua obtenção (inelegibilidade inata) ou porque houve ilícito que (a) impede o seu nascimento (inelegibilidade-obstáculo) ou (b) gera a sua cassação (inelegibilidade-perda).

As inelegibilidades cominadas potenciadas, que são aquelas que se prologam em um determinado trato de tempo, impedem que haja a concessão do registro de candidatura em um prélio que ocorra durante a sua vigência na esfera jurídica do nacional. Se há a aplicação de uma inelegibilidade cominada potenciada a um fato ilícito (v.g., quatro anos ao fato ilícito das contas desaprovadas), a negativa do registro em uma dada eleição que ocorra nesse período não decorre da ausência de uma condição de elegibilidade (v.g., falta da quitação eleitoral), mas da existência da inelegibilidade-obstáculo, decorrente de um ato ilícito.

A essas sutilezas conceptuais não chegou boa parte da doutrina eleitoralista, que repete monocordiamente o Magister dixit, assumindo como legítimas essas criações pretorianas que ofendem escancaradamente o ordenamento jurídico e a Constituição Federal. Em um inocente parágrafo introduzido pela Instrução nº 118/2008, criou-se uma gravíssima sanção de inelegibilidade, pondo gravame à decisão de desaprovação das contas que o legislador ordinário de 2006 não ousou.

A mesma sanção, ademais, aplica-se ao candidato que não tenha apresentado a sua prestação de contas, na forma do § 1º do art.34 da Instrução nº 118/2008.

3. Defesa e recursos no processo de prestação de contas.

Diante da gravidade da sanção de inelegibilidade por quatro anos para as contas desaprovadas ou julgadas como não-apresentadas, faz-se mister analisar com maior cuidado o procedimento de prestação de contas do ponto de vista da defesa da esfera jurídica do candidato, assim como também dos recursos a ela inerentes.

Apresentada a prestação de contas no prazo legal, o Juiz Eleitoral procerá o exame das contas, podendo se vale de assessoramento técnico, seja de servidores dos tribunais de contas, seja de técnicos requisitados aos municípios ou pessoa idônea da comunidade com conhecimento técnico (art.35 da Instrução nº 118/2008).
Havendo indícios de irregularidades, o Juiz Eleitoral poderá requisitar diretamente do candidato ou comitê financeiro explicações, ou optar por determinar diligências para complementação dos dados ou saneamento das falhas. O prazo para cumprimento das diligências é exíguo, de 72 horas (art.36). Ao final do prazo, deve ser emitido parecer conclusivo, salvo se ainda houver necessidade de nova diligência (§ 4º do art.36).

Em caso de emissão de parecer técnico desfavorável, opinando pela desaprovação das contas ou pela sua aprovação com ressalvas, o candidato ou comitê financeiro terão vistas dos autos para se manifestarem em 72 horas, a contar da intimação (e não da juntada do mandado nos autos; art.37, caput). Posteriormente, dar-se-á ao Ministério Público Eleitoral vistas dos autos por 48 horas, para consignar a sua manifestação.

O Juiz Eleitoral poderá decidir pela aprovação integral, aprovação com ressalvas, desaprovação e pela não-prestação, publicando a sua sentença até 8 dias antes da diplomação (art.41). Em caso de desaprovação ou não-prestação de contas, não existe impedimento à concessão do diploma ao candidato eleito, nada obstante possa ele ter de responder por abuso de poder econômico, na forma do art.22 da LC 64/90 (art.41, § 1º). A conseqüência jurídica gravosa dar-se-á pela inelegibilidade cominada potenciada de quatro anos, ficando impedido de receber a certidão de quitação eleitoral. É dizer, gravará a esfera jurídica do candidato derrotado e do eleito que deseje imediatamente tentar a obtenção de um outro mandato, já que não poderão concorrer em eleições que ocorram no biênio seguinte. O eleito que cumprir o mandato na integralidade não terá gravame nenhum.

Contra a decisão que desaprova ou dar por não-prestada as contas cabe recurso inominado para os tribunais regionais, em caso de eleição municipal, e ordinário para o TSE, em caso de eleições estaduais. Sustento o cabimento do recurso ordinário porque a decisão de desaprovação ou não-prestação geram a inelegibilidade cominada potenciada, inobstante para a teoria clássica possa se sustentar o cabimento do recurso especial, porque não se trataria de inelegibilidade a negativa de quitação eleitoral, mas de ausência de condição legal de elegibilidade. Sendo especial o recurso cabível, o candidato com as contas rejeitas ou não-recebidas estará em situação delicadíssima, com sérias limitação, próprias desse tipo de rrecurso, para se defender.

Para ler no googlepage, clique aqui.

Comentários

Unknown disse…
Caro Professor Adriano Soares

De início, parabenizo-o pela iniciativa do blog. Finalmente todos aqueles que estudam e vivenciam diariamente o Direito Eleitoral terão um meio de debater, via Internet, os assuntos mais relevantes e atuais do tema. Que não são poucos.

E essa minha primeira manifestação é no sentido de somar aos seus comentários nas questões relativas à prestação de contas de campanha.

Efetivamente, a resolução n.º 22.715, em seu artigo 21, §1º, veio a reforçar um comando que, entendo, já se extraía da própria Resolução 22.500/TSE, que regulamentou a arrecadação de recursos e prestação de constas no pleito de 2006, e que, em seu artigo 19, § 1º, dispunha que: “Excepcionalmente, será permitida a arrecadação de recursos após o prazo fixado na cabeça deste artigo, exclusivamente para quitação de despesas já contraídas e não pagas até aquela data, as quais deverão estar integralmente quitadas até a data da entrega da prestação de contas à Justiça Eleitoral.”

Somado esse dispositivo com aquele inserido no artigo 22, §3º pela Lei 11.300/06 “O uso de recursos financeiros para pagamentos de gastos eleitorais que não provenham da conta específica de que trata o caput deste artigo implicará a desaprovação da prestação de contas do partido ou candidato” era possível extrair-se claramente a intenção – tanto do legislador, quando do próprio TSE ao editar referida resolução em 2006 – de efetivamente obrigar o candidato a quitar todas as despesas contraídas no período eleitoral até a data da entrega da prestação de contas.

Mas isso parece não ter sido suficiente. Ou melhor, foi suficiente até que fosse levado a julgamento um caso envolvendo o Presidente da República recentemente reeleito. Convenhamos, melhor oportunidade não havia para desdizer aquilo que foi dito, mas que não estava literalmente escrito. Então, diante da inexistência de vedação expressa, somada ao que dispõe o artigo 360, II do Código Civil, aceitou-se a novação da dívida (de mais de R$ 10.000.000,00) pelo PT nacional, e aprovaram-se as contas de campanha do Presidente Lula.

Entretanto, agora essa prática está definitiva – e expressamente – vedada pela Resolução 22.715/TSE. Há que se reconhecer o grande avanço no entendimento do TSE quando ao tema, e que certamente contribuirá para o lento avanço do processo de moralização e ampla publicidade dos gastos eleitorais.

Ora, de que adiantava aumentar-se o rigor na fiscalização da arrecadação e gastos eleitorais, se após o término do pleito gigantescas dívidas era incorporadas por partidos políticos e “encaixadas” nas prestações de contas partidárias, que, por sua vez, sujeitam-se a análises muito mais “brandas”, raramente divulgadas, e cuja reprovação possui efeitos práticos pouco eficazes.

Mas, por outro lado, como bem ressaltado, é preciso cautela.

Sem dúvida alguma essa nova orientação do TSE no que se refere à impossibilidade de “assunção” das dívidas de campanha por terceiros – inclusive pelos partidos políticos - deverá, necessariamente, implicar em uma análise razoável e muito mais ponderada das contas de campanha.

Isso porque, não se pode admitir que toda e qualquer dívida de campanha que não esteja quitada até a data da entrega da prestação de contas à Justiça Eleitoral implique na rejeição das contas do candidato (com a incidência de todas as nefastas conseqüências introduzidas pela Res. 22.715 e adiante abordadas).

É preciso, com bem ressaltado na explanação do grande professor Adriano, que se pondere a intensidade entre o total de receitas e despesas ao final da campanha, analisando-se a situação sob o prisma da ocorrência – ou não – de prática abusiva e que teve por finalidade a burla à legislação eleitoral.

Não verificada tal prática, os eventuais descompassos entre receitas e despesas, penso, deverão resultar apenas em ressalvas na aprovação das contas, não podendo, entretanto, resultar na sua rejeição.

No que se refere ao malfadado §3º do artigo 41 da mesma Resolução 22.715/TSE, trata-se, a toda evidência, de norma ABSOLUTAMENTE INCONSTITUCIONAL, posto que institui, por meio de instrução, nova hipótese de inelegibilidade pelo prazo de 4 anos. Mas para que não pareça aqui que estou apenas a aplaudir e me curvar a todos as palavras do professor Adriano Soares de forma casuísta, transcrevo abaixo trecho da petição que protocolei em mãos ao Min. Ari Pargendler na ocasião da realização da audiência pública no auditório do TSE, na qual se discutiram os projetos das resoluções para as próximas eleições (e que já traziam tal previsão):

“EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO ARI PARGENDLER – DD. RELATOR DAS RESOLUÇÕES RELATIVAS ÀS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2008, DO COLENDO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

PARTIDO DOS TRABALHADORES – DIRETÓRIO ESTADUAL DO ESTADO DO PARANÁ, pessoa jurídica de direito privado, devidamente registrado perante o Egrégio Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, com endereço na Rua Princesa Izabel, 160 - São Francisco - Curitiba – Paraná, CEP: 80410-110, vem, mui respeitosamente à presença de Vossa Excelência, por intermédio de seu advogado ao final subscrito, apresentar suas sugestões em relação às minutas de Resolução relativas às eleições municipais de 2008.

I – DA RESOLUÇÃO DE ARRECADAÇÃO E PRESTAÇÃO DE CONTAS:

Consta do artigo 42 de referida proposta de Resolução que:

Art. 42. A decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos será publicada em sessão até 8 (oito) dias antes da diplomação (Lei nº 9.504/97, art. 30, § 1º, com nova redação dada pela Lei nº 11.300/2006).

§1º Desaprovadas as contas, o Juízo Eleitoral remeterá cópia de todo o processo ao Ministério Público Eleitoral para os fins previstos no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990 (Lei nº 9.504/97, art. 22, § 4º, acrescentado pela Lei nº 11.300/2006).
§2º Na hipótese de aplicação irregular de recursos do Fundo Partidário ou da ausência de sua comprovação, a decisão que julgar as contas determinará a sua devolução ao Erário.

§3º Sem prejuízo do disposto no § 1º, a decisão que desaprovar as contas de candidato implicará no impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral durante o curso do mandato ao qual concorreu. (grifou-se)

Diante do contido no §3º de referido artigo 42, o candidato que tiver suas contas rejeitadas pela Justiça Eleitoral no pleito de 2008 ficará impedido de obter certidão de quitação eleitoral durante os anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 (período que compõe o mandato eletivo para o qual serão disputas as eleições vindouras).

Logo, considerando o disposto no artigo 11, §1º, VI da Lei 9.504/97 (Art. 11. Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as dezenove horas do dia 5 de julho do ano em que se realizarem as eleições. - § lº O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes documentos: (...) VI - certidão de quitação eleitoral;),
tem-se que, no presente pleito, o candidato que tiver suas contas desaprovadas por decisão da Justiça Eleitoral, restará inelegível para disputar as eleições a se realizarem nos próximos 4 anos. Eis que, impedido de obter certidão de quitação eleitoral durante todo o “curso do mandato”, não poderá o candidato requerer seu registro de candidatura validamente.

Portanto, salvo melhor juízo, à luz da regra trazida pelo art. 14, §9º da Constituição Federal, sugere-se, data máxima vênia, que o §3º do artigo 42 da proposta de Resolução sobre arrecadação de recursos e prestação de constas de campanha seja suprimido, eis que padece de inconstitucionalidade por estabelecer nova hipótese de inelegibilidade sem obedecer à reserva de lei complementar.

(...)

É o que, respeitosamente, se tem a sugerir!

Brasília, 13 de fevereiro de 2008.

XXXXXXXXXXXXXX”

Da petição que protocolei na ocasião fica clara minha posição sobre o tema. Na ocasião, o Dr. Guilherme ainda fez uso da palavra, pugnando, à bem da própria Justiça, pelo afastamento de tal norma da versão final da Resolução n.º 22.715. De nada adiantou, tal dispositivo foi mantido e será plenamente aplicável às próximas eleições (talvez até retroativamente, para atingir as eleições de 2004 e 2006, vide PA 19.899/TSE), de tal sorte que, todos aqueles que tiverem suas contas rejeitadas – inclusive por despesas não quitadas, outra inovação – restarão inelegíveis pelo prazo de 4 anos (2 eleições, prazo de inelegibilidade maior do que aquele que é cominado para quem comete abuso de poder, vide artigo 22, XIV da LC n.º 64/90).

Finalmente, no que se refere ao processo de prestação, temos outra "alteração" - ou, no caso, manutenção de um entendimento que esperávamos ver superado agora - que merece atenção.

Até o pleito de 2004, era plenamente possível a interposição de Recurso (no caso, por se tratar de pleito municipal, Recurso Especial) em face da decisão que rejeitava contas de campanha. Senão vejamos:

AGRAVO. Eleições 2004. Rejeição de Contas. Recibos eleitorais. Regimental. Fundamentos não invalidados. Não-provimento.
A ausência dos recibos eleitorais constitui irregularidade insanável, pois impossibilita o efetivo controle das contas por parte da Justiça Eleitoral.
Nega-se provimento a agravo regimental que não invalida os fundamentos da decisão impugnada.
(TSE – AG 6265 – Min. Humberto Gomes de Barros)

Entretanto, de forma repentina, e sem qualquer alteração no ordenamento jurídico ou mesmo disposição expressa na Resolução que, na época, regulava o procedimento de prestação de contas, o TSE, para o pleito de 2006, passou a inadmitir Recurso em processos de prestação de contas:

Agravo regimental. Partido político. Prestação de contas anual. Decisão regional. Desaprovação. Recurso especial. Não-cabimento. Processo. Natureza administrativa.
1. É pacífico o entendimento no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral no sentido do não-cabimento de recurso especial contra decisão em processo de prestação de contas, dado o seu caráter administrativo.
2. Cabe ao interessado insurgir-se por intermédio das vias judiciais que entender cabíveis, de modo a provocar a jurisdicionalização da questão.
Agravo regimental a que se nega provimento.
(TSE - AG 8982 – Min. Caputo Bastos)

Dessa forma, todos os que disputaram o pleito de 2006 e tiveram suas contas rejeitadas pelos Tribunais Regionais, foram surpreendidos com a nova orientação do TSE no sentido de que, por se tratar de "processo de natureza administrativa", não seria cabível recurso em face de decisão relativa à prestação de contas.

Todavia, ao ler a minuta da Resolução n.º 22.715, surpreendi-me positivamente ao me deparar com a regra estampada no artigo 44 de tal “proposta de Resolução”:

Art. 44. Da decisão que versar sobre contas não se admitirá pedido de reconsideração, cabendo recurso para o Tribunal Regional Eleitoral.
Parágrafo Único. Da decisão dos tribunais regionais eleitorais relativa ao exame de contas somente caberá recurso especial para o Tribunal Superior Eleitoral quando proferida contra disposição expressa na Constituição Federal ou de lei, ou quando ocorrer divergência na interpretação de lei entre dois ou mais tribunais.

Ou seja, pareceu-me, à primeira vista, que ao TSE havia voltado atrás em seu entendimento adotado subitamente no curso das eleições de 2006, e passaria, novamente, a admitir a interposição de Recurso nos processos de prestação de contas.

Entretanto, mais adiante, percebi que o motivo de surpresa já havia, NOVAMENTE, desaparecido, eis que, verificando a “versão definitiva” da Resolução 22.715/TSE, constatei que referida disposição – que autorizava expressamente o manejo de Recurso Especial em face da decisão dos Regionais que julgam as contas de campanha – havia sido suprimida do texto da resolução.

Portanto, acredito que para as próximas eleições – sobretudo em decorrência de tal alteração expressa no conteúdo da minuta da Res. 22.715 para a sua versão final - prevalecerá a regra, ou melhor, entendimento jurisprudencial (ao meu ver ilegal e violador do devido processo legal e da ampla defesa, posto que nada há {ou haveria de existir} de administrativo nos processos que julgam as contas de campanha) que veda a interposição de Recurso em face da decisão que aprecia as contas de campanha.

Já me alonguei demais para minha primeira postagem, prometo que as próximas serão breves e pontuais... Mas essa situação demanda grande atenção e discussão pelos juristas que atuam com Direito Eleitoral.

Um grande abraço

Luis Gustavo Severo
Unknown disse…
Moderador: Importante as colocações do Luís Gustavo. Notem que o gravame ao candidato com as contas rejeitadas é gravíssimo: inelegibilidade em "processo administrativo" que não admite recurso.
Unknown disse…
Caro professor,

Tenho uma dúvuda quanto à essa alteração. Elas valem apenas para os mandatos iniciados em 2006, ou abrangem também os de 2004?

Tenho um caso interessante de um candidato de 2004 que teve as contas rejeitadas e não moveu qualquer recurso.

Caso queira se candidatar novamente, sua certidão será negativa. Ao apresentar os documentos seu registro será impreterivelmente indeferido?

Existiria recurso?

Obrigada
Anônimo disse…
Caro Professor Adriano Soares
Tenho um amigo que foi candidato nas eleições de 2008 e sua contas não foram aprovadas queria saber se o mesmo poderá ser candidato ou assumir um cargo de confiança?

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