Direito eleitoral, ciência e consciência

O Direito Eleitoral, como ramo das ciências jurídicas, tem por objeto os estudos das normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais que disciplina as eleições. O objeto do Direito Eleitoral são as regras e princípios jurídicos. Os seus enunciados são descritivos, visam compreender o fenômeno jurídico eleitoral. Não se nega que as proposições jurídicas científicas tenham, também, como toda a proposição descritiva das ciências sociais, uma natureza criptonormativa, nada obstante sejam metalinguagem que visam sobretudo a compreender. Quando passam a desejar prescrever já não são mais enunciados científicos, mas uma simulacro perigoso de ciência.

O Direito Eleitoral reclama que se faça ciência. Que os seus institutos sejam levados a sério. Necessita que os seus conceitos jurídicos fundamentais, como elegibilidade e inelegibilidade, não sejam (mal)tratados como se fosse vazios, sem conteúdo, apenas como artefatos retóricos para sustentar qualquer tese casuística, qualquer bandeira política de momento. Por isso, fazer ciência jurídica no Direito Eleitoral tornou-se uma postura revolucionária: significa tratar a Constituição e os direitos fundamentais com seriedade, com respeito, com metódica preocupação científica, estudando um objeto que se põe para ser compreendido dentro do discurso intersubjetivo público e partilhado.

O papel da doutrina, portanto, não é o de tentar sobrepor-se ao ordenamento jurídico, tentando criar conceitos que adulterem o seu conteúdo, os seus institutos e as suas proposições prescritivas. A doutrina que busca criar conceitos casuísticos para sustentar a sua ideologia não tem estatura científica; é exercício disfarçado de política ideológica, visando antidemocraticamente reformar o sistema jurídico por meio de subversão das fontes do direito. Ou, ainda pior, visando justificar normas jurídicas que afrontam a Constituição Federal e derretem lentamente os direitos e garantias individuais, sempre em nome de bons propósitos, sempre em nome de boas causas (nada obstante, ao fim e ao cabo, tragam consequências jurídicas gravíssimas).

Em um universo de conceitos jurídicos vazios, em que a doutrina se despede de fazer o seu mister, fica a jurisprudência livre para usar os conceitos normativos de qualquer modo, como se fossem destituídos de conteúdo. Com isso, até mesmo a inelegibilidade deixa de ser sanção para ser um "sabe-se-lá-o-que". É ainda onde mais nitidamente se percebe o terrível vazio normativo decorrente do vazio teórico: os institutos jurídicos passam a ser usados de qualquer modo e jeito para atender a quaisquer fins e bandeiras. Há apenas, como consectário disso, a irracionalidade jurídica, o decisionismo voluntarista e uma crise de segurança jurídica.

Esse espaço será e continuará sendo um espaço de diálogo jurídico, buscando construir uma rede social de interessados em temas jurídicos eleitorais. Mas continuará sendo, também, um espaço de resistência democrática contra o decisionismo, o voluntarismo jurídico e, sobretudo, em favor da ciência. Aqui se faz doutrina séria, honesta, querendo conhecer e meditar sobre o Direito Eleitoral. Ao mesmo tempo em que se discute sobre problemas práticos, busca-se criar uma Comunidade de Eleitoralistas formada por gente que quer pensar, aprender e resolver os seus casos concretos, as suas dúvidas, mas sem perder de vista que a democracia é um regime construído pela liberdade de expressão, não nascendo da tutela do Estado ou da destruição dos direitos e garantias individuais.

Comentários

Caríssimo Mestre Adriano:

Concordo plenamente, mais uma vez, com cada uma de suas palavras, pontos e vírgulas.

O abandono científico do direito eleitoral, a casuística jurisprudencial, a insegurança e a surpresa a cada mundaça de magistrados no TSE, a inventividade hermenêutica, que deveria ter norma proibitiva, no Código Eleitoral, barrando a retroação interpretativa (como há na Lei do Processo Administrativo Federal); deveria haver um escrutínio cultural prévio no provimento dos Tribunais Eleitorais e TSE, pois a mobilidade com que se sucedem juízes deveria ser minorada com a capacidade teórica que deveriam possuir (teoria do direito, teoria do processo, direito constitucional, hermenêutica jurídica, etc); deveríamos refletir muito sobre a "cultura dos precedentes", cultura que nos falta não só no TSE, mas abala também o STJ.

Vivemos um tobogã de emoções jurídicas na seara eleitoral, no qual,as vezes, o advogado que não leu o boletim informativo da noite antecedente está desinformado...

Podemos perguntar, diante dos "cismos eleitorais", qual é o Direito Eleitoral do momento? Assim como, criticamente perguntava Geraldo Ataliba, qual a Constituição do momento, desdenhando, com justiça, das inúmeras e cauísticas reformas pelo qual o texto fundamental passava.

O TSE, no caso da "ficha limpa", ao meu ver, data máxima vênia, se superou em arrepiar o que acreditávamos como estabelecido no sistema de direitos e garantias fundamentais. Queimou livros, esqueceu teorias, desdenhou de pensamentos libertários e liberais.

Creio que o STF, independente e cônscio, haverá de barrar essa discutível jurisprudência, negatória de certeza e dignidade científica ao direito eleitoral!

Prof. Ruy Samuel Espíndola

Postagens mais visitadas deste blog

Reeleição de pai a prefeito com o filho candidato a vice

Moreira Alves: pressupostos de elegibilidade e inelegibilidades

Prestação de contas: processo administrativo e recursos