Fichas limpas e vigência: relação com o tempo do fato ilícito, não com o tempo do registro de candidatura

Diz o presidente da OAB, em nota:

"O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, defendeu a aplicação da Lei Ficha Limpa já nas eleições deste ano. O principal argumento dele é o fato de ainda não haver candidaturas registradas. “Não se trata de retroagir a lei para alcançar os mandatos daqueles que hoje ocupam cargos eletivos, mas de aplicar a lei para as novas candidaturas”, afirma Ophir, em nota.

Digo eu, sem nota:

A inelegibilidade inata é ausência de elegibilidade; a inelegibilidade cominada, obstáculo ou perda de elegibilidade.

A inelegibilidade cominada pode ser simples ou potenciada: simples, para apenas à eleição em que ocorreu o ato ilícito; potenciada, para eleições que ocorram dentro de um trato de tempo futuro.

O registro de candidatura será deferido para os que, tendo atendidos os pressupostos de regular andamento do processo, preencham as condições de elegibilidade e não incidam em sanção de inelegibilidade pré-existente.

Dizer que a nova lei complementar pode ser integralmente aplicada às eleições de 2010 porque foi sancionada antes das convenções partidárias ou antes do registro de candidatura, é tomar o todo pela parte, sem observar que na nova lei há normas diferentes no conteúdo e nos efeitos. É dito fácil, portanto, apressado em demasia, ainda no raso da lei. É fala semelhante a quem diz, com pés na beira da praia de Piedade, em Recife, Pernambuco, com a água mal chegando aos joelhos, que o mar não tem pedras, nem ouriços, nem tampouco tubarões... (Pobre do surfista que deu ouvidos e se atreveu a ir mais adiante!).

Se há inelegibilidade cominada potenciada, prescreve a lei do tempo ou (a) do fato ilícito eleitoral (ou não eleitoral, como o crime contra a fé pública, v.g.) ou (b) da relação processual, se a sanção for efeito anexo da sentença, transitada ou não em julgado. Sendo sanção, a interpretação é sempre de direito estrito; restritiva, portanto.

Nos dois casos, responde o direito intertemporal, em que a Constituição Federal de 1988 prescreveu o princípio da irretroatividade e do respeito ao ato jurídico perfeito, à coisa julgado e ao direito adquirido.

Erram palmarmente a OAB e os que lhe inspiraram a fala.

E é triste que assim seja, pela fundamental importância da OAB na defesa do Estado Democrático de Direito.

Erram porque não se deve relacionar o tempo da lei nova eleitoral com o tempo do registro de candidatura, mas, sim, confrontá-la com o tempo do ato ilícito que fez nascer a inelegibilidade ou com o tempo da relação processual em cuja decisão anexou-se a sanção. A não ser assim, para que afinal o art.16 da CF/88? Para que a garantia do devido processo legal? Para que a garantia da ampla defesa e do contraditório?

Afinal, como demonstra Ingo Wofgang Sarlet (A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998, p.249), há plena eficácia dos direitos de defesa como direitos fundamentais, devendo ter a máxima efetividade garantida pelo § 1º do art.5º da CF/88, integrados que são aqueles direitos pelos direitos de liberdade, igualdade, direitos-garantias, garantias institucionais, direitos políticos e posições jurídicas fundamentais em geral, "que, preponderantemente, reclamam uma atitude de abstenção dos poderes estatais e dos particulares (como destinatários dos direitos)".

Uma última afirmação: se as restrições aos direitos políticos forem tomadas como restrição a direito fundamental, na linha do posicionamento do STF na ADPF 144/DF, então a distinção que fiz entre tratamento diverso aos efeitos inclusos e anexos à sentença se evanescem, dando-se a máxima efetividade ao princípio da presunção de inocência e ao princípio da irretroatividade.

Comentários

Corretíssimas as ponderações do grande eleitoralista e jurista Prof. Adriano Soares.

Impressionou-me a pouca atenção ao real conteúdo de todas as alterações feitas na LC 64/90, pela imprensa e pela classe jurídica. E também ao equívoco de interpretação de nossa grande presidente Ophir.

Precisamos cuidar para que o "moralismo" que tem tomado o direito no Brasil, não enfraqueça o devido processo legal.

Estamos judicializando em demasia os pleitos eleitorais. Criando terceiros e quartos turnos em município onde sequer, por lei, pode haver o segundo.

A justiça eleitoral está sendo demais contramajoritária, anulando, com facilidade a vontade dos "representados", do corpo de eleitores.

Os direitos políticos, tal qual o direito de liberdade ambulatória, são fundamentais em uma democracia.

Estamos carecendo de uma cultura de direitos fundamentais real e verdadeira, que não seja obnubilada pelo preconceito político, pelo moralismo e pelo deficit de legitimidade que imprensa e setores da classe jurídica impingem as instituições republicano-representativas.

Precisamos ter mais cuidado com os princípios constitucionais que disciplina a republica, a soberania popular e o voto.

Precisamos refletir, sociologicamente, porque, por exemplo, em todas as eleições suplementares feitas por conta de nulidade de eleições, ganho, quase sem exceção, o mesmo grupo político, no mais das vezes com mais votos do que no primeiro e original pleito?

A vontade eleitoral fora conspurcada no primeiro pleito?

Ou estamos vendo ainda o povo brasileiro como eleitor-criança, tutelável por uma justiça que não tem encontrado limites parternalistas, justificáveis em construções jurisprudenciais de duvidosa consistência jurídico-constitucional?

Precisamos construir uma doutrina de valorização dos direitos políticos como direitos fundamentais. Uma teoria jurídica que valorize o espaço da política e da atuação política.

E uma doutrina, ao modo dos norte-americanos, que apregoe, como moderação e racionalidade, a auto-contenção da justiça eleitoral na intervenção sobre a vontade dos eleitores, ao atacar registros, diplomas e mandatos conquistados livrementes nas urnas.

Parabéns ao Mestre Adriano pela sua sempre consistência e colocação, em primeiro plano, do rol de direitos fundamentais, e nunca se deixar levar pelo discurso fácil do "politicamente correto".

Do Professor Ruy Samuel Espíndola,

Advogado publicista - Mestre em Direito Público - e Docente em Direito Constitucional e Direito Eleitoral

Postagens mais visitadas deste blog

Reeleição de pai a prefeito com o filho candidato a vice

Judicialização de menos: mais democracia.

Inelegibilidade, elegibilidade, não-elegibilidade e cassação de registro