Lá iam as discussões sobre a EC 58/09, o ataque das entidades (de sempre) contra a sua aplicação imediata, afirmando que a inconstitucionalidade do seu art.3º, em razão de fazer retroagir as normas sobre aumento das cadeiras de vereador para o pleito de 2008. Essa tema foi sobejamente tratado aqui no blog. Os efeitos do art.3º foram suspensos, em manifestação da Ministra Carmen Lúcia que foi por demais elogiada naquela oportunidade: “Se nem certeza do passado o brasileiro pode ter, de que poderia ele se sentir seguro no direito?”, questionou a ministra ao deferir a liminar e suspender eventuais posses de suplentes de vereadores com base na EC 58/09.
Pois bem. Não sou panfletário, não estou aqui defendendo bandeiras com distorções de argumentos jurídicos. É legítimo defender bandeiras, ter posições ideológicas, fazer apologia de uma determinada tomada de posição. Mas a legitimidade se esgarça quando questões jurídicas relevantíssimas passam a ser tratadas também de modo panfletário, sem a seriedade e prudência necessárias. E a legitimidade some quando entidades tipicamente formadas por pessoas da área jurídica passam a usar a sua condição para adulterar sérias questões jurídicas, passando para os leigos uma falsa certeza, em um casuísmo perigoso e deletério.
A discussão sobre a aplicação imediata da LC 135/2010 tem dois âmbitos de preocupação jurídica: (a) uma, de direito intertemporal, relativa a conflito de normas no tempo, se há retroatividade das suas normas em função do seu art.3º e, em havendo, se seria essa norma inconstitucional; outra, (b) de obrigatoriedade da lei no tempo, que se refere a chamada vacatio legis, em que se analisará a lei nova em face do art.16 da CF/88.
Ambas discussões estão sendo embaralhadas em relação à Lei Complementar 135. Tentemos aqui, então, colocar rapidamente as coisas em seu devido lugar, dando uma visão rápida de ambos os problemas, com os quais a Justiça Eleitoral se defrontará.
Pontes de Miranda tem um texto maravilhoso sobre conflito de leis no tempo nos Comentários à Constituição de 1946, Rio de Janeiro: Borsói, tomo IV, p.399, em que afirma, com grifos apostos:
"A lei nova não fica adstrita aos fatos de hoje e de amanhã; o que se dá, rigorosamente, é que ela se restringe ao tempo de hoje e ao de amanhã, até que outra lei corte este amanhã, o pontue, criando o hoje da nova denominação legal, o seu hoje e o seu amanhã. Em vez de uma análise dos fatos, ou de direitos (critério subjetivo), uma análise do tempo, ou melhor, dos lapsos de tempo".
A lição de Pontes de Miranda mostra que não estamos, no direito intertemporal, diante da regra absoluta de que os fatos de ontem não possam ser apanhados pela regra de hoje (a lei nova). Essa regra absoluta existe no direito penal, quando a Constituição Federal prescreve que não há crime sem lei anterior que o defina. É dizer, não apenas aos efeitos da lei há interdição à retroatividade (plano da eficácia); a própria lei há de ser anterior ao fato ilícito (plano da existência da lei). Em matéria penal, de conseguinte, a regra sobre irretroatividade é absoluta. E essa norma de sobredireito alcança as normas que criam penas principais ou acessórias de natureza criminal, ainda que não constem no corpo do Código Penal. É o caso da alínea "e" do inciso I do art.1º da LC 64/90, com a redação dada pela LC 135/10. Trata-se de previsão de pena acessória (inelegibilidade por 8 anos) a ser anexada à sentença penal condenatória, independentemente do trânsito em julgado, bastando que exista decisão colegiada (em explícita violação ao art.15, III, da CF/88).
Outra coisa, nada obstante, ocorre com as demais normas da LC 64/90, com a redação da LC 135/10. Aqui, a discussão tem outra natureza. A questão a saber é se a lei nova poderia (i) criar condições de elegibilidade a ser aplicada de imediato para o próximo pleito eleitoral e, também, se poderia (ii) criar hipóteses novas de inelegibilidade para fatos ilícitos passados já ocorridos antes da vigência da lei nova ou (iii) criar novos prazos de inelegibilidade cominada, aplicando-os aos fatos pretéritos, já constituídos, inclusive em casos já julgados, quando a elegibilidade aplicada era de menor prazo (exemplo, era de 3 anos e passou, na lei, para 8 anos).
Um parêntese. Note-se, portanto, como é teoricamente pobre as afirmações que vêm sendo feitas por representantes da OAB, da AMB e do MCCE. E como, na prática, visam realmente constranger a Justiça Eleitoral a decidir em favor da tese que defendem, como se fosse possível que se pudesse dar a questão da aplicação da LC 135 uma única resposta. São diversas as questões que se imponhem na resolução deste tema. Volto ao tema.
A elegibilidade é direito de ser votado que nasce do fato jurídico do registro de candidatura. As condições de elegibilidade são pressupostos para a obtenção do registro de candidatura. Logo, pode a lei nova criar novas condições de elegibilidade antes das convenções partidárias, sem que haja retroatividade (conflito de normas no tempo). A questão a saber - que é de outra natureza - é se essa norma entraria em vigor imediatamente ou apenas na eleição posterior, em razão da norma do art.16 da CF/88 (obrigatoriedade da lei no tempo). Ali, a questão é de direito intertemporal, de relacionamento entre normas no tempo; aqui, trata-se de vacatio legis, da aplicação imediata ou não da lei. Questões diversas, que merecem respostas diferentes.
Note-se, ainda, uma outra importante afirmação: as condições de elegibilidade são sempre fatos jurídicos lícitos ou situações jurídicas lícitas, que compõem o suporte fático do fato jurídico complexo que faz nascer o direito ao registro de candidatura. Lembrem-se que uma norma jurídica pode conter, em seu suporte fático, fatos brutos ou fatos já juridicizados, ou efeitos jurídicos (vide: Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, 4ª ed., Sâo Paulo: RT, 1977. Tomo I, p.77, passim). Aqui, as condições de elegibilidade são sempre ou fatos jurídicos ou efeitos jurídico (situação jurídica). Nacionalidade, ser filiado a partido, ter domicílio eleitoral, estar no exercício dos direitos políticos, estar desincompatibilizado são estados jurídicos (situações jurídicas); alistamento eleitoral, indicação em convenção partidária são fatos jurídicos. Toda condição de elegibilidade é situação ou fato jurídico lícito. Esses conceitos podem ser melhor estudados em minhas Instituições de direito eleitoral, 8ª ed., Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009, capítulos 01, 02 e 04, especialmente.
Entendo - sempre entendi -, que as normas sobre elegibilidade e inelegibilidade são normas que tratam do macro processo eleitoral. Alterá-las no período de uma ano antes da eleição é trazer modificação que muda as regras do jogo eleitoral em tema relevantíssimo, que são os direitos políticos em sua dupla face: votar e ser votado, ou em uma das suas faces: ser votado. Nesse sentido, mais uma vez o voto do Min. Gilmar Mendes, já citado anteriormente (aqui):
"O pleno exercício dos direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de regras que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a restringi-las ou subtraí-las.
O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. As restrições à essa regra trazidas no bojo da reforma constitucional apenas serão válidas na medida que não afetem ou anulem o exercício dos direitos fundamentais que conformam a cidadania política.
Assim, podemos afirmar que a lei nova que cria ou modifica uma condição de elegibilidade pode ser aplicada imediatamente, sem ter efeitos retroativos, nada obstante deva se submeter a vacatio legis de um ano, observando a norma do art.16 da CF/88.
Outra questão relevante é o saber se a lei nova poderia criar uma nova hipótese de inelegibilidade para fatos que ocorreram antes da sua entrada em vigor. Ou seja, poderia a lei nova apanhar fatos no passado, convertê-los hoje em ilícitos e atribuir-lhe uma sanção de inelegibilidade?
A questão não pode ser esgotada aqui. Aqui é um blog e já estou indo longe demais aos fins de um blog. Porém, dá para ir um pouco adiante. Um pouco, apenas.
Há duas possibilidades de retroatividade da norma: a retroatividade da própria jurisdicização; e a retroatividade de efeitos dos fatos jurídicos jurisdicizados. Se há um fato no passado e a norma, no presente, fá-lo jurídico, a jurisdicização é hoje, invadindo porém o passado. A norma tem que apanhar o fato punctual ou linear já não mais existente, ou a parte dele que deixou de existir no tempo, e tomá-lo como se fosse hoje, no hoje da norma. É evidente que, no tempo da norma, há o hoje, porém, no tempo do fato, o ontem é que há. Há invasão nas marcas, nas fronteiras do tempo pela norma jurídica, para transformar juridicamente no hoje o que ontem não era.
Se o fato passado será tomado como fato jurídico lícito no presente, a ausência de consequências negativas não impede a invasão do passado pela norma no presente. A retroatividade, quer da norma (ao jurisdicizar fato passado), quer dos efeitos do fato jurídico (ao fazê-los ir para o passado da norma), é tolerada pelo ordenamento jurídico. É, digamos, uma retroatividade do bem!
O que não se admite, e ofende a dignidade da pessoa humana, ofende o princípio da não-surpresa, viola a segurança jurídica, é quando a retroatividade opera para jurisdicizar fatos ilícitos e atribuir-lhes, no passado, presente ou futuro sanções.
Também, não se admite que um fato reputado anteriormente ilícito tenha, por norma nova mais gravosa, a sua sanção amplificada, sendo-lhe aplicável desde logo. É dizer, o fato já era ilícito ao tempo da lei antiga; a lei nova aumenta a sanção e, desde já, alcançaria os fatos submetidos a outra disciplina legal.
Nos dois casos, patentes, por exemplo, nas alíneas "e" e "j" do inciso I do art.1º da LC 64/90, com a redação da LC 135/10, há evidente retroatividade, em razão do art.3º da LC 135/10, cuja retroatividade aflitiva, negativa, gravosa, ressalta a não mais poder.
Havia muito o que dizer, ainda. Mas paro por aqui. Porque o blog deve conter um texto mais leve e porque estou cansado - ao menos por hoje - de pregar no deserto.
Estou, conscientemente, cumprindo o meu papel cívico de alertar a comunidade jurídica sobre os excessos e abusos dessa lei dos fichas limpas. Porto-me com a convicção de que é preciso salvaguardar princípios democráticos e republicanos para podermos viver realmente em um Estado Democrático de Direito. Os direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas da Constituição.
Ao contrário da comemoração da sociedade, da esperança que muitos honestamente nutrem de estarmos construindo, com essa lei, uma democracia melhor, vou dormir inquieto, com a certeza que cedemos, mais uma vez, à tentação autoritária. E o TSE, na pressa em responder a consulta formulada, não teve o tempo necessário para decantar essas tantas, e outras, questões complexas que o tema suscita.
Bem, mas vamos em frente. Buscando fazer ciência jurídica. Buscando que os direitos fundamentais resistam sempre às ondas de momento. Elas passam. Sim, passam.
Comentários
Como pensar de modo diverso, pois, antes, pela autoridade de seus argumentos é pouco ou quase nada que pode ser dito em contradita. Mas, ao lado disso, do valor do quanto dito de per si, há o valor de quem disse. Há o argumento de autoridade.
Parabéns mais uma vez, pela precisão de palavras ditas com a razão, no exercício públio do belo ofício do "jurista que tem que ir a onde o povo está", não para adulá-lo ou iludi-lo, mas preveni-lo e instrui-lo contra os "cantos das sereias" na saga de Ulysses.
Subscrevo, como homem, cidadão, professor e advogado, cada letra, cada vírgula, cada pensamento vertido em prosa, pelo poeta das letras eleitorais do Brasil: Adriano da Costa Soares!
Com admiração e sincero respeito, do Ruy Samuel Espíndola