Sandra Cureau e o moralismo eleitoral: as garantias individuais flexibilizadas
Há frases que entram para a cultura popular pela sua inventividade ao chocar com a sua verdade, impondo justamente a reflexão sobre o seu sentido contrário. Uma delas nasceu da pena de Stanislaw Ponte Preta: "Ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos". Em tempos de fichas limpas, os defensores da aplicação imediata da Lei Complementar 135/2010 apelam para argumentos chocantes, como aquela frase célebre. Se não há segurança jurídica, que seja a insegurança usada para detonar os fichas sujas! A lógica perversa foi usada pela vice-procuradora-geral Eleitoral, Sandra Cureau, como nos mostra a coluna Radar, de Lauro Jardim (aqui):
ELEIÇÕES 2010MP: Ficha limpa em outubro | 6:01A vice-procuradora-geral Eleitoral, Sandra Cureau, defende a validade do Lei Ficha Limpa já em outubro. Lula sancionou a lei impede a candidatura de políticos condenados por órgãos colegiados na sexta-feira. Ela foi publicada ontem no Diário Oficial. Mas o TSE terá de se pronunciar em breve sobre a validade da norma para as eleições daqui a quatro meses. Há dúvidas se a lei terá validade imediata ou apenas para as eleições de 2012.Atualmente, o tribunal tem um entendimento jurídico segundo o qual não se pode mexer em qualquer regra que influenciaria o jogo eleitoral a um ano das eleições – seria o caso da Lei da Ficha Limpa. Mas Sandra Cureau disse que o próprio TSE não tem seguido à risca tal regra. Ela lembrou que o tribunal passou a exigir a citação do vice-prefeito em ações de perda de mandato do chefe do Executivo. Essa decisão ocorreu em março de 2008 e teve efeitos nas eleições municipais de sete meses depois.Como é uma consulta, os ministros do TSE não são obrigados a pedir parecer do Ministério Público. Mas Cureau acredita que, por ser um caso mais delicado, o tribunal deve ouvir a opinião do MP antes de decidir. Diz a vice-procuradora-geral Eleitoral:– A Lei poderia valer para outubro. O princípio da não-surpresa foi violado ali (no caso da citação do vice-prefeito). Então não seria uma coisa nova, no caso da Ficha Limpa.Por Lauro Jardim
Sandra Cureau é uma procuradora respeitada e destacada. Acompanho o seu trabalho com imenso interesse, por suas posições avançadas em diversos temas. A frase, porém, é infeliz e mostra uma face preocupante da escalada argumentativa dos que defendem a imediata aplicação da lei complementar dos fichas limpas.
Trata-se de uma marcha insana de muitos em defesa do moralismo eleitoral, para a instauração de uma democracia sem votos, sem eleitor. Uma visão ingênua, casuística, em certo sentido reacionária. É a tentativa de construção de uma democracia tutelada, ao fim e ao cabo, de uma democracia sem previsibilidade, em que a segurança jurídica é um mal a ser combatido, em que as garantias individuais não passam de um estorvo pequeno burguês.
A fala impressiona: "se houve ilegalidade, que ela também agora prossiga, em nome dos nossos princípios!" Ou seja, a observância das garantias individuais, o respeito aos princípios jurídicos depende do lado em que estamos. Quando convém, que sejam eles postergados, superados por interpretações de conveniência. Enfim, que as garantias valham enquanto e tão somente servem ou se submetem aos nossos interesses (ainda que atentos aos melhores valores).
É isso, afinal, do que se trata: o moralismo eleitoral não respeita a Constituição Federal nem o ordenamento jurídico. Em nome da ética na política, às favas com os escrúpulos....
Ah, aquela frase fica bem em certos militantes do projeto ficha limpa. Não têm compromisso com teoria jurídica ou com o bom senso. São ideólogos de uma tese e pouco se importam com a Constituição Federal ou com princípios jurídicos. Mas não cai bem em um agente público do nível e da competência da vice-procuradora-geral Eleitoral. Ainda mais pela função institucional que ela desempenha: ser guardiã da legalidade, para além das suas posições pessoais.
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