Ontem ministrei aula na Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Depois, almocei com Hélio Silveira, meu anfitrião, Ricardo Penteado, Alexis Vargas e outros colegas advogados. Sílvio Salata participou da aula, porém não pode nos acompanhar na refeição, ele que preside a Comissão de Estudos Eleitorais da OAB-SP.
O prato principal do almoço terminou sendo a Lei Complementar 135, os vários problemas jurídicos decorrentes da sua redação capenga, uma série de inconformidades que trará muitos problemas práticos. Para os advogados, é uma lei interessante: tantas serão as demandas que a advocacia eleitoral passará a ser ainda mais importante. Para a sociedade, uma perda imensa, conforme refletimos.
Uma das questões tratadas na mesa foi sobre a aplicação do art.26-C, introduzido na LC 64/90 pela LC 135/2010, aliada a aplicação do art.3º da LC 135/10. Eis as normas:
“Art. 26-C. O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1o poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso.
§ 1o Conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus.
§ 2o Mantida a condenação de que derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente.
§ 3o A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo.”
..........
Art. 3o Os recursos interpostos antes da vigência desta Lei Complementar poderão ser aditados para o fim a que se refere o caput do art. 26-C da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, introduzido por esta Lei Complementar.
A norma do art.26-C traz o mesmo vício que perpassa a discussão sobre a LC 135: trata de coisas diferentes como se fossem iguais, misturando alhos com bugalhos ou, como diz o vulgo, confundindo "conhaque de alcatrão com catraca de canhão". Só para não perder o humor, é claro.
Pois bem, a alínea "e" do inciso I do art.1º da LC 64/90, velha e nova redações, trata(va) da inelegibilidade cominada potenciada anexada ope legis e automaticamente à sentença penal condenatória. A diferença da nova para a antiga redação está em que a inelegibilidade passa de 3 para 8 anos e a anexação deixa de ser apenas à sentença transitada em julgado, sendo também para aquela proferida por órgão colegiado. Deixo de falar aqui da inconstitucionalidade dessa pena acessória de natureza penal ter eficácia antes do trânsito em julgado, em desabrida ofensa aos art.5º, LVII, e art.15, III, ambos da CF/88.
Atenho-me neste post a tentar responder uma pergunta aparentemente simples: qual o órgão colegiado será competente para suspender a inelegibilidade cominada anexada à sentença penal pendente de recurso? Em uma interpretação literal do texto da norma, a resposta seria simples: o órgão colegiado ao qual couber a apreciação do recurso contra a decisão colegiada. Ocorre que a sentença que gera a inelegibilidade da alínea "e" não tem natureza eleitoral; é sentença de natureza penal proferida por órgão colegiado da Justiça Comum. (E nem vou discutir aqui se o Tribunal do Júri é órgão colegiado para os fins da LC 135, o que poderá demandar outra discussão jurídica repleta de bizantinices e bacoradas afins).
Ora, imaginemos que um Tribunal de Justiça mantenha a condenação de alguém por homicídio. A essa decisão, por força daquela norma da alínea "e", se anexaria automaticamente o efeito da inelegibilidade ("desde a condenação", dirá a nova norma). Como efeito excluso, automático, o órgão colegiado que condena originariamente ou mantém a condenação do primeiro grau não precisa se manifestar sobre a sanção de inelegibilidade. Ela é pena acessória. Nada obstante, a LC 135 permite que o órgão colegiado superior àquele que proferiu a decisão colegiada possa suspender cautelarmente a inelegibilidade anexada automaticamente "sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida".
Ou seja, pela interpretação literal da norma do art.26-C, caberá ao Superior Tribunal de Justiça (ou mesmo ao STF, a depender do caso) decidir se haverá, ou não, a suspensão dos efeitos anexos da inelegibilidade cominada. Caberá, enfim, à Justiça Comum decidir matéria de inelegibilidade, excluindo ou não os seus efeitos concretos.
E não se diga que hoje já seria assim com a inelegibilidade da alínea "g". Aqui, diferentemente, trata-se de uma decisão administrativa transitada em julgado, porém submetida ao crivo do Poder Judiciário. A liminar que se pede na Justiça Comum é para suspender os efeitos da decisão administrativa, independentemente da sua natureza: se inclusos ou exclusos, se inexos ou anexos.
Pela alínea "e", nada obstante, caberia à Justiça Comum decidir se os efeitos anexos de inelegibilidade da decisão colegiada penal condenatória seriam ou não suspensos. Para que a inelegibilidade fosse gerada, bastaria a decisão colegiada de natureza penal (tomada pela LC 135 como ato-fato jurídico), sem motivação judicial quanto ao ponto; para que a inelegibilidade fosse suspensa, necessária seria uma decisão judicial colegiada fundamentada, após expresso pedido no recurso aviado.
Para completar, quem tiver uma condenação penal feita por órgão colegiado, ainda pendente de recurso, poderia/deveria aditar o recurso pendente de julgamento, pedindo expressamente a suspensão da inelegibilidade cominada, porque, segundo a LC 135/10, estaria ela, inelegibilidade, sendo aplicada automaticamente a fatos ilícitos anteriores à sua vigência, mesmo a decisões já prolatadas antes dela, lei, entrar em vigor. Essa a razão do art.3º da LC 135. Já os que tenham contra si uma decisão penal transitada em julgado, teriam de suporta os efeitos da inelegibilidade criada posteriormente pela LC 135. Às favas com a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e a direito adquirido!
Agradeço ao Ricardo Penteado e ao Hélio Silveira pela discussão sobre a LC 135. Ao Alexis Vargas, defensor da lei dos fichas limpas, agradeço o bom diálogo e a sua fina sensibilidade para observar que a lei tem problemas gravíssimos para uma interpretação consequente.
A questão que me ponho a pensar é: pode a Justiça Comum decidir sobre a a suspensão ou não da sanção de inelegibilidade? E a pergunta que faço decorre da norma do art.121, § 4º, inciso III da CF/88:
Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.
§ 1º - Os membros dos tribunais, os juízes de direito e os integrantes das juntas eleitorais, no exercício de suas funções, e no que lhes for aplicável, gozarão de plenas garantias e serão inamovíveis.
§ 2º - Os juízes dos tribunais eleitorais, salvo motivo justificado, servirão por dois anos, no mínimo, e nunca por mais de dois biênios consecutivos, sendo os substitutos escolhidos na mesma ocasião e pelo mesmo processo, em número igual para cada categoria.
§ 3º - São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias de "habeas-corpus" ou mandado de segurança.
§ 4º - Das decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais somente caberá recurso quando:
I - forem proferidas contra disposição expressa desta Constituição ou de lei;
II - ocorrer divergência na interpretação de lei entre dois ou mais tribunais eleitorais;
III - versarem sobre inelegibilidade ou expedição de diplomas nas eleições federais ou estaduais;
IV - anularem diplomas ou decretarem a perda de mandatos eletivos federais ou estaduais;
V - denegarem "habeas-corpus", mandado de segurança, "habeas-data" ou mandado de injunção.
Penso que nos cabe, sim, meditar sobre se estamos diante de outra inconstitucionalidade da LC 135. E é o que farei mais detidamente.
O certo é que me impressiona a quantidade de problemas que esta LC 135 suscita e suscitará em nossa prática eleitoral. Estamos em um momento de enorme perplexidade jurídica. Quando a festa dos torquemadista passar, quando as falas panfletárias forem apenas uma triste lembrança, estaremos sendo, todos nós, chamados a repensar essa lei pouco inteligente e equivocada.
Comentários
Estamos, por certo, defendendo os mesmos valores: a Constituição, seu sistema de direitos fundamentais, e a democracia, que deve ser mediada por um sistema eleitoral, um sistema processual e um sistema constitucional manejados de forma coerente - especialmente os dois primeiros respeitando o último.
Mas creio que existem outros pontos: a lei fala em órgão colegiado, para suspender a inelegibilidade.
Essas últimas decisões, em processos criminais ou cíveis (de improbidade), salvo embargos infringentes ou declaratórios, se submeterão a Recurso Especial ou Extraordinário, onde não se discutem fatos e há duplo juízo de admissibilidade, um monocrático, no Tribunal "ad quo", e outro no Tribunal "ad quem".
Esses recursos, em regra, no País, tem sido julgado monocraticamente, em seu mérito, ou pelo não conhecimento.
A suspensão, pela lc 135/10, deveria ser dada por órgão colegiado do Tribunal "ad quem".
Ora, tal situação tornaria muito dificultosa a obtenção da "cautelaridade", mas restrita do que os instrumentos de atraibuição de efeito a recursos de estrito direito hoje existentes!
Pois em regra há pareceres ministeriais,s contra-razões dos recorridos, despacho de admissibilidade, etc...
Assim, poderiam os Tribunais concederem, por seus Ministros, no lugar dos órgãos colegiados, o efeito suspensório da inelegibilidade (por aplicação do 557, parágrafo 1-A, do CPC)?
Creio que teleologicamente, sistematicamente, sim!
Todavia, a literalidade da lei e seus fins restritivos complicará demais a operacionalidade do efeito suspensivo.
todas as decisões deste ano, em AIRC, AIJE e Representações, assim como AIME, serão colegiadas.
E deverá, em todas, haver o aforamento de pedido cautelar para suspender os efeitos das condenações, devida aos efeitos drásticos de uma mera condenação em grau originário, e não recursal, como nos casos de decisão colegiada na justiça não eleitoral.
Outros problemas processuais graves? Por certo!
E vejam a fragilidade do voto do Ministro Carvalido, já publicado no site do TSE, que "embaralha" processo eleitoral e processo judicial, dizendo que as normas da LC 135/10, seriam meras normas de direito material eleitoral?!